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							Na reunião dos BRICS, na semana passada em Joanesburgo, seus líderes disseram querer usar mais suas moedas nacionais em vez do dólar para pagamentos transfronteiriços. Além da China e demais membros do grupo, vários países têm buscado mecanismos alternativos de pagamentos externos que reduzam a necessidade de recorrer ao dólar dos EUA ou outras moedas conversíveis. Pares de países têm acordado liquidar transações comerciais e financeiras entre si em suas moedas locais, em geral mediante acordos bilaterais entre seus bancos centrais.

Há três funções cumpridas por moedas para além de fronteiras nacionais. Antes de tudo, servem como unidade de medida de valor para faturas comerciais e preços de ativos financeiros negociados. Cumprem também o papel de meio de troca: de efetuar pagamentos pelas transações comerciais e financeiras através de fronteiras. Por fim, servem para a formação de reservas, de acumulação de valores e riqueza no exterior.

Falamos aqui da segunda função, ou seja, a função de efetuar pagamentos transfronteiriços. Cabe observar que, embora de uma perspectiva privada agentes em geral associem a segunda e a terceira funções, há no mínimo uma parcela das transações cujo pagamento pode ser determinado pelas autoridades públicas nacionais.

Que motivações pode haver para o uso de moedas locais em tais pagamentos? Uma óbvia é a vulnerabilidade em relação a sanções para fins geopolíticos pelos países emissores e destinos de reservas externas em suas moedas. Esse é o caso de Rússia, Irã e Venezuela, objetos de sanções no passado recente; por razões geopolíticas, China e outros estão também buscando diminuir sua vulnerabilidade a potenciais sanções contra eles. Além disso, há o objetivo de aumentar o uso da moeda local em transações internacionais, como ocorre com a China.

Adicionalmente, pode-se apontar um eventual ganho em termos de menores estoques de reservas em moedas plenamente conversíveis – dólar, euro, iene, libra esterlina –, necessários para que bancos centrais assegurem a estabilidade em seus pagamentos transfronteiriços. Neste caso, porém, vale observar um possível custo: em relações bilaterais nas quais um país seja sistematicamente superavitário – como atualmente, por exemplo, tende a ser o Brasil em relação à China –, o superavitário tende a acumular reservas externas na moeda do país no lado deficitário, em vez de fazê-lo em alguma moeda plenamente conversível e generalizadamente aceita por outros agentes em mercados cambiais.

Basta que um lado imponha o uso de moeda local nos pagamentos para que, mesmo a contragosto, os agentes privados do outro tenham que aceitá-la para tornar possível a transação. Exportadores brasileiros, por exemplo, hoje em dia não encaram mais uma conversibilidade mandatória de suas receitas para a moeda brasileira e podem dispor de sua receita em dólares ou o que quiserem. Contudo, se os chineses exigirem pagar em sua moeda, os brasileiros não terão opção se quiserem lá vender.

O renminbi (RMB) chinês tem sido a moeda com maior expansão de uso mediante acordos bilaterais de pagamentos externos. Em fins de março deste ano, o Banco Central chinês havia assinado acordos bilaterais de criação de linhas de troca de moedas (currency swaps) com bancos centrais de 41 países – inclusive o Brasil -, num montante de US$ 480 bilhões e com o saldo de fundos acionados em tais linhas atingindo US$ 15,6 bilhões. A China também expandiu agências de compensação no exterior.

A China tem sido capaz de usar sua moeda para liquidar metade de suas transações externas de comércio e investimento. Segundo um trabalho recente do FMI, numa amostra de pagamentos externos entre a China e 125 países, a mediana de uso do RMB saiu de zero em 2014 para 20% em 2021.

Além disso, o RMB tem sido ocasionalmente usado em transações bilaterais entre terceiros. Algumas refinarias da Índia compraram petróleo da Rússia pagando em RMB. A Argentina, por sua vez, recorreu este mês à sua linha bilateral com a China para efetuar pagamento de serviço de dívida com o FMI.

Rússia e Índia também têm buscado estender o uso de suas moedas locais. Na mesma direção, na última reunião da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), em maio na Indonésia, os membros acordaram desenvolver um arcabouço para a liquidação de transações externas em suas moedas locais.

O BRICS já havia instalado, em 2010, um Mecanismo de Cooperação Interbancária para facilitar pagamentos em moedas locais por bancos do grupo. Em 2018, lançou a BRICS Pay, uma parceria público-privada de projeto de plataforma de pagamentos digitais em moedas locais.

O uso crescente de moedas locais em pagamentos externos será parte do que já chamamos aqui de “desdolarização devagar e limitada”. Enquanto uma moeda local não for plenamente conversível, permanecendo sujeita a regulações restringindo a liquidez e a disponibilidade de ativos, não cumprirá a função de reserva externa de valor para o grosso dos agentes na economia global. Mas a “fragmentação” parcial do sistema global de pagamentos está em curso.

Otaviano Canuto foi vice-presidente e diretor executivo no Banco Mundial, diretor executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de assuntos internacionais no Ministério da Fazenda e professor da USP e da Unicamp. Atualmente é membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente da Brookings Institution, professor na Elliott School of International Affairs da George Washington University e professor afiliado na Universidade Mohammed VI. Fez mestrado na Concordia University em Montreal e doutorado na Unicamp, ambos em economia.

COLUNA PUBLICADA NA FOLHA DE S.PAULO

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Por que cresce o uso de moedas locais em pagamentos internacionais

Na reunião dos BRICS, na semana passada em Joanesburgo, seus líderes disseram querer usar mais suas moedas nacionais em vez do dólar para pagamentos transfronteiriços. Além da China e demais membros do grupo, vários países têm buscado mecanismos alternativos de pagamentos externos que reduzam a necessidade de recorrer ao dólar dos EUA ou outras moedas conversíveis. Pares de países têm acordado liquidar transações comerciais e financeiras entre si em suas moedas locais, em geral mediante acordos bilaterais entre seus bancos centrais.

Há três funções cumpridas por moedas para além de fronteiras nacionais. Antes de tudo, servem como unidade de medida de valor para faturas comerciais e preços de ativos financeiros negociados. Cumprem também o papel de meio de troca: de efetuar pagamentos pelas transações comerciais e financeiras através de fronteiras. Por fim, servem para a formação de reservas, de acumulação de valores e riqueza no exterior.

Falamos aqui da segunda função, ou seja, a função de efetuar pagamentos transfronteiriços. Cabe observar que, embora de uma perspectiva privada agentes em geral associem a segunda e a terceira funções, há no mínimo uma parcela das transações cujo pagamento pode ser determinado pelas autoridades públicas nacionais.

Que motivações pode haver para o uso de moedas locais em tais pagamentos? Uma óbvia é a vulnerabilidade em relação a sanções para fins geopolíticos pelos países emissores e destinos de reservas externas em suas moedas. Esse é o caso de Rússia, Irã e Venezuela, objetos de sanções no passado recente; por razões geopolíticas, China e outros estão também buscando diminuir sua vulnerabilidade a potenciais sanções contra eles. Além disso, há o objetivo de aumentar o uso da moeda local em transações internacionais, como ocorre com a China.

Adicionalmente, pode-se apontar um eventual ganho em termos de menores estoques de reservas em moedas plenamente conversíveis – dólar, euro, iene, libra esterlina –, necessários para que bancos centrais assegurem a estabilidade em seus pagamentos transfronteiriços. Neste caso, porém, vale observar um possível custo: em relações bilaterais nas quais um país seja sistematicamente superavitário – como atualmente, por exemplo, tende a ser o Brasil em relação à China –, o superavitário tende a acumular reservas externas na moeda do país no lado deficitário, em vez de fazê-lo em alguma moeda plenamente conversível e generalizadamente aceita por outros agentes em mercados cambiais.

Basta que um lado imponha o uso de moeda local nos pagamentos para que, mesmo a contragosto, os agentes privados do outro tenham que aceitá-la para tornar possível a transação. Exportadores brasileiros, por exemplo, hoje em dia não encaram mais uma conversibilidade mandatória de suas receitas para a moeda brasileira e podem dispor de sua receita em dólares ou o que quiserem. Contudo, se os chineses exigirem pagar em sua moeda, os brasileiros não terão opção se quiserem lá vender.

O renminbi (RMB) chinês tem sido a moeda com maior expansão de uso mediante acordos bilaterais de pagamentos externos. Em fins de março deste ano, o Banco Central chinês havia assinado acordos bilaterais de criação de linhas de troca de moedas (currency swaps) com bancos centrais de 41 países – inclusive o Brasil -, num montante de US$ 480 bilhões e com o saldo de fundos acionados em tais linhas atingindo US$ 15,6 bilhões. A China também expandiu agências de compensação no exterior.

A China tem sido capaz de usar sua moeda para liquidar metade de suas transações externas de comércio e investimento. Segundo um trabalho recente do FMI, numa amostra de pagamentos externos entre a China e 125 países, a mediana de uso do RMB saiu de zero em 2014 para 20% em 2021.

Além disso, o RMB tem sido ocasionalmente usado em transações bilaterais entre terceiros. Algumas refinarias da Índia compraram petróleo da Rússia pagando em RMB. A Argentina, por sua vez, recorreu este mês à sua linha bilateral com a China para efetuar pagamento de serviço de dívida com o FMI.

Rússia e Índia também têm buscado estender o uso de suas moedas locais. Na mesma direção, na última reunião da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), em maio na Indonésia, os membros acordaram desenvolver um arcabouço para a liquidação de transações externas em suas moedas locais.

O BRICS já havia instalado, em 2010, um Mecanismo de Cooperação Interbancária para facilitar pagamentos em moedas locais por bancos do grupo. Em 2018, lançou a BRICS Pay, uma parceria público-privada de projeto de plataforma de pagamentos digitais em moedas locais.

O uso crescente de moedas locais em pagamentos externos será parte do que já chamamos aqui de “desdolarização devagar e limitada”. Enquanto uma moeda local não for plenamente conversível, permanecendo sujeita a regulações restringindo a liquidez e a disponibilidade de ativos, não cumprirá a função de reserva externa de valor para o grosso dos agentes na economia global. Mas a “fragmentação” parcial do sistema global de pagamentos está em curso.

Otaviano Canuto foi vice-presidente e diretor executivo no Banco Mundial, diretor executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de assuntos internacionais no Ministério da Fazenda e professor da USP e da Unicamp. Atualmente é membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente da Brookings Institution, professor na Elliott School of International Affairs da George Washington University e professor afiliado na Universidade Mohammed VI. Fez mestrado na Concordia University em Montreal e doutorado na Unicamp, ambos em economia.

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