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A partir do início do ano, os resultados das eleições nos Estados Unidos e os anúncios de programas fiscais do governo Biden suscitaram atenção sobre a hipótese de repetição do que aconteceu em 2013, vale lembrar, a famosa “birra dos mercados diante do encolhimento de estímulos monetários” (taper tantrum). Em abril daquele ano, o então presidente do Federal Reserve Bank (Fed), Ben Bernanke, declarou que em breve sua instituição começaria a discutir o caminho para uma eventual parada e reversão do programa de aquisição de títulos, a política monetária não convencional implementada depois da crise financeira global. Foi o suficiente para disparar uma onda de elevação de juros e de fuga de capital de mercados emergentes, em particular de um grupo então apelidado de “cinco frágeis” (África do Sul, Brasil, Índia, Indonésia e Turquia).

Os “cinco frágeis” tinham em comum à época elevados déficits em conta corrente e forte dependência de fluxos de ingresso de capital externo. Tinham sido destino de fluxos significativos poucos anos antes, como espécie de efeito de transbordamento da expansão da liquidez nos Estados Unidos a partir da política monetária não convencional, ou seja, o “afrouxamento quantitativo” (QE, em inglês). Bastou a alta probabilidade atribuída ao início de seu afunilamento (taper) meses à frente, em 2013, para provocar uma “reação infantil” (tantrum) por parte dos investidores.
Pois bem. A hipótese de superaquecimento da economia dos Estados Unidos este ano, reforçada pelos sinais de inflação mais alta, criou a percepção de que o Fed poderá se ver obrigado a reorientar sua política, antecipando seu taper e, eventualmente, subindo juros. A perseverança na comunicação do Fed quanto à margem para espera criada pelo regime de metas inflacionárias anunciado no ano passado – com 2% de inflação como média e não como teto –, assim como na possibilidade de que o pulo recente na taxa de inflação estaria decorrendo de choques temporários e reversíveis, foi convincente o suficiente para evitar aumentos nas taxas reais de juros mais longas. Ainda que com leve aumento nos “prêmios de riscos” relativos a surpresas quanto à inflação.

Mas foi o suficiente para gerar, segundo o Instituto de Finanças Internacionais (IIF em inglês), no período entre os resultados das eleições para o senado dos Estados Unidos no estado da Geórgia em 5 de janeiro e fins de março, uma depreciação cambial em metade do universo de economias emergentes até pouco maior que em 2013. A experiência brasileira foi mais ou menos equivalente à de 2013, embora tenha que se levar em conta a forte reação à época, via swaps cambiais, pelo Banco Central do Brasil. 

Em abril, os números de ingresso de investimento em carteira em mercados emergentes melhoraram, mesmo se descontada a aquisição de títulos de dívida e ações da China, um caso fora da curva. No mês, a América Latina recebeu US$ 5,5 bilhões para compra de ações e US$ 7,8 bilhões de títulos de dívida, segundo o IIF. 

No Brasil, os investimentos externos em carteira acumularam US$ 39 bilhões nos doze meses até abril, enquanto investimentos diretos externos acumularam quase US$ 23 bilhões desde o começo do ano. O real até teve uma alta em torno de 2% no mês de maio, embora não tenha regressado para níveis abaixo dos R$ 5 por dólar como antes da pandemia. 

Contudo, segue acesa na mente das pessoas a questão quanto à possibilidade de um taper tan-trum 2.0, caso o Fed se veja obrigado a acelerar o curso por enquanto projetado para ocorrer, gradualmente, a partir dos próximos dois anos. Por outro lado, não estamos mais em 2013. 

Enquanto os “cinco frágeis” exibiam déficits em conta corrente em torno de 4,4% do PIB então, hoje o número é de apenas 0,4%. Em 2018, quando houve a “tempestade de maio” suscitada pelo que parecia ser finalmente um início do tapering, seguido de valorização do dólar perante outras moedas, o grupo havia se reduzido a “dois frágeis”, Turquia e Argentina. 

No caso do Brasil, no mês de maio que passou, o déficit em conta corrente acumulado em doze meses deve ter atingido o menor patamar desde fevereiro de 2008. Preços de commodities e exportações em alta têm tornado a conta corrente facilmente financiável apenas mediante fluxos de investimento direto externo. Mesmo com as recentes revisões para cima nas projeções de crescimento do PIB em 2021, não há por que esperar mudanças dramáticas em importações que alterem tal quadro. 

Adicionalmente, não houve nos últimos anos um fluxo de recursos externos para economias emergentes equivalente ao que ocorreu antes do taper tantrum em 2013. No Brasil, o perfil e o volume de ingressos de recursos na conta de capital mudaram substancialmente a partir de 2015, com estrangeiros encolhendo substancialmente sua participação no financiamento da dívida pública. 

Nesse contexto, a saída maciça de capital de economias emergentes no início da pandemia, no ano passado, inclusive de títulos públicos em moeda local, se deu enquanto seus déficits públicos aumentavam, refletindo suas políticas de amortecimento do choque. A despeito do desafio, emergentes em geral conseguiram financiar seus déficits fiscais recordes recorrendo aos sistemas financeiros locais e, em alguns casos, a seus bancos centrais. Fluxos de compra externa de títulos públicos em alguns emergentes voltaram na segunda metade do ano, mas de modo parcial e diferenciado entre emergentes.     

Teriam então os riscos de um taper tantrum 2.0 sobre fluxos de divisas sido simplesmente substituídos por riscos fiscais domésticos? Não completamente eliminados, afinal, não apenas alguma emissão externa de títulos denominados em divisas poderá ser necessária, como taxas domésticas de juros não ficarão infensas na hipótese de alguma elevação significativa dos juros nos Estados Unidos. Mas definitivamente o foco se deslocou para o âmbito fiscal. 

Em se tratando de vulnerabilidade fiscal entre emergentes, o Brasil inevitavelmente figura nas discussões. Nesse campo, as notícias mais recentes não têm sido ruins. A acomodação de gastos extraordinários fora do teto de gastos no orçamento desse ano acabou não exercendo forte impacto sobre taxas de juros. A arrecadação tributária surpreendeu para cima. Além disso, o Tesouro Nacional conseguiu atravessar os riscos de rolagem da dívida em abril e maio, cujo vencimento nesses meses foi extraordinário. A dívida pública de curto prazo deverá estar acima de 19% do PIB nos próximos três anos, mas o Tesouro evitou ter que assumir o peso dos juros elevados na parte longa da curva desde a segunda metade do ano passado

Os riscos maiores para a economia brasileira estão alhures: contaminação da população pelo coronavírus por conta da insuficiência de imunização; inflação acompanhando preços de commodities e não retorno da taxa real de câmbio de antes da pandemia; riscos de racionamento energético; e outros. Todos gerados de dentro, não como os de um taper tantrum 2.0.

Otaviano Canuto é membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente do Brookings Institute, professor assistente adjunto em Columbia University, professor na Elliott School of International Affairs (GWU) e principal do Center for Macroeconomics and Development em Washington. Foi vice-presidente e diretor executivo no Banco Mundial, diretor executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de assuntos internacionais no Ministério da Fazenda e professor da USP e da Unicamp.

COLUNA PUBLICADA NA FOLHA DE SÃO PAULO

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Por que não temer a “birra” dos mercados dessa vez

A partir do início do ano, os resultados das eleições nos Estados Unidos e os anúncios de programas fiscais do governo Biden suscitaram atenção sobre a hipótese de repetição do que aconteceu em 2013, vale lembrar, a famosa “birra dos mercados diante do encolhimento de estímulos monetários” (taper tantrum). Em abril daquele ano, o então presidente do Federal Reserve Bank (Fed), Ben Bernanke, declarou que em breve sua instituição começaria a discutir o caminho para uma eventual parada e reversão do programa de aquisição de títulos, a política monetária não convencional implementada depois da crise financeira global. Foi o suficiente para disparar uma onda de elevação de juros e de fuga de capital de mercados emergentes, em particular de um grupo então apelidado de “cinco frágeis” (África do Sul, Brasil, Índia, Indonésia e Turquia).

Os “cinco frágeis” tinham em comum à época elevados déficits em conta corrente e forte dependência de fluxos de ingresso de capital externo. Tinham sido destino de fluxos significativos poucos anos antes, como espécie de efeito de transbordamento da expansão da liquidez nos Estados Unidos a partir da política monetária não convencional, ou seja, o “afrouxamento quantitativo” (QE, em inglês). Bastou a alta probabilidade atribuída ao início de seu afunilamento (taper) meses à frente, em 2013, para provocar uma “reação infantil” (tantrum) por parte dos investidores.
Pois bem. A hipótese de superaquecimento da economia dos Estados Unidos este ano, reforçada pelos sinais de inflação mais alta, criou a percepção de que o Fed poderá se ver obrigado a reorientar sua política, antecipando seu taper e, eventualmente, subindo juros. A perseverança na comunicação do Fed quanto à margem para espera criada pelo regime de metas inflacionárias anunciado no ano passado – com 2% de inflação como média e não como teto –, assim como na possibilidade de que o pulo recente na taxa de inflação estaria decorrendo de choques temporários e reversíveis, foi convincente o suficiente para evitar aumentos nas taxas reais de juros mais longas. Ainda que com leve aumento nos “prêmios de riscos” relativos a surpresas quanto à inflação.

Mas foi o suficiente para gerar, segundo o Instituto de Finanças Internacionais (IIF em inglês), no período entre os resultados das eleições para o senado dos Estados Unidos no estado da Geórgia em 5 de janeiro e fins de março, uma depreciação cambial em metade do universo de economias emergentes até pouco maior que em 2013. A experiência brasileira foi mais ou menos equivalente à de 2013, embora tenha que se levar em conta a forte reação à época, via swaps cambiais, pelo Banco Central do Brasil. 

Em abril, os números de ingresso de investimento em carteira em mercados emergentes melhoraram, mesmo se descontada a aquisição de títulos de dívida e ações da China, um caso fora da curva. No mês, a América Latina recebeu US$ 5,5 bilhões para compra de ações e US$ 7,8 bilhões de títulos de dívida, segundo o IIF. 

No Brasil, os investimentos externos em carteira acumularam US$ 39 bilhões nos doze meses até abril, enquanto investimentos diretos externos acumularam quase US$ 23 bilhões desde o começo do ano. O real até teve uma alta em torno de 2% no mês de maio, embora não tenha regressado para níveis abaixo dos R$ 5 por dólar como antes da pandemia. 

Contudo, segue acesa na mente das pessoas a questão quanto à possibilidade de um taper tan-trum 2.0, caso o Fed se veja obrigado a acelerar o curso por enquanto projetado para ocorrer, gradualmente, a partir dos próximos dois anos. Por outro lado, não estamos mais em 2013. 

Enquanto os “cinco frágeis” exibiam déficits em conta corrente em torno de 4,4% do PIB então, hoje o número é de apenas 0,4%. Em 2018, quando houve a “tempestade de maio” suscitada pelo que parecia ser finalmente um início do tapering, seguido de valorização do dólar perante outras moedas, o grupo havia se reduzido a “dois frágeis”, Turquia e Argentina. 

No caso do Brasil, no mês de maio que passou, o déficit em conta corrente acumulado em doze meses deve ter atingido o menor patamar desde fevereiro de 2008. Preços de commodities e exportações em alta têm tornado a conta corrente facilmente financiável apenas mediante fluxos de investimento direto externo. Mesmo com as recentes revisões para cima nas projeções de crescimento do PIB em 2021, não há por que esperar mudanças dramáticas em importações que alterem tal quadro. 

Adicionalmente, não houve nos últimos anos um fluxo de recursos externos para economias emergentes equivalente ao que ocorreu antes do taper tantrum em 2013. No Brasil, o perfil e o volume de ingressos de recursos na conta de capital mudaram substancialmente a partir de 2015, com estrangeiros encolhendo substancialmente sua participação no financiamento da dívida pública. 

Nesse contexto, a saída maciça de capital de economias emergentes no início da pandemia, no ano passado, inclusive de títulos públicos em moeda local, se deu enquanto seus déficits públicos aumentavam, refletindo suas políticas de amortecimento do choque. A despeito do desafio, emergentes em geral conseguiram financiar seus déficits fiscais recordes recorrendo aos sistemas financeiros locais e, em alguns casos, a seus bancos centrais. Fluxos de compra externa de títulos públicos em alguns emergentes voltaram na segunda metade do ano, mas de modo parcial e diferenciado entre emergentes.     

Teriam então os riscos de um taper tantrum 2.0 sobre fluxos de divisas sido simplesmente substituídos por riscos fiscais domésticos? Não completamente eliminados, afinal, não apenas alguma emissão externa de títulos denominados em divisas poderá ser necessária, como taxas domésticas de juros não ficarão infensas na hipótese de alguma elevação significativa dos juros nos Estados Unidos. Mas definitivamente o foco se deslocou para o âmbito fiscal. 

Em se tratando de vulnerabilidade fiscal entre emergentes, o Brasil inevitavelmente figura nas discussões. Nesse campo, as notícias mais recentes não têm sido ruins. A acomodação de gastos extraordinários fora do teto de gastos no orçamento desse ano acabou não exercendo forte impacto sobre taxas de juros. A arrecadação tributária surpreendeu para cima. Além disso, o Tesouro Nacional conseguiu atravessar os riscos de rolagem da dívida em abril e maio, cujo vencimento nesses meses foi extraordinário. A dívida pública de curto prazo deverá estar acima de 19% do PIB nos próximos três anos, mas o Tesouro evitou ter que assumir o peso dos juros elevados na parte longa da curva desde a segunda metade do ano passado

Os riscos maiores para a economia brasileira estão alhures: contaminação da população pelo coronavírus por conta da insuficiência de imunização; inflação acompanhando preços de commodities e não retorno da taxa real de câmbio de antes da pandemia; riscos de racionamento energético; e outros. Todos gerados de dentro, não como os de um taper tantrum 2.0.

Otaviano Canuto é membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente do Brookings Institute, professor assistente adjunto em Columbia University, professor na Elliott School of International Affairs (GWU) e principal do Center for Macroeconomics and Development em Washington. Foi vice-presidente e diretor executivo no Banco Mundial, diretor executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de assuntos internacionais no Ministério da Fazenda e professor da USP e da Unicamp.

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