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																																			A combinação de praga da pandemia, guerra na Ucrânia e secas nos últimos dois anos parece ter saído da Bíblia. Agora, essa combinação está possivelmente incorporando a fome, com a crise de preços de alimentos, em parte do mundo.

O índice de preços mundiais de alimentos, coletado há 60 anos pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, em inglês), atingiu seu recorde em março, declinando suavemente em abril.

A elevação dos preços globais dos alimentos começou em meados de 2020, quando confinamentos e restrições em cadeias de suprimento ocorreram durante a corrida por estocagem de alimentos. Restrições de mobilidade de mão de obra migrante afetaram colheitas em boa parte do mundo.

Desde então, fenômenos climáticos também trouxeram problemas com as principais culturas em muitas partes do mundo. O Brasil, o maior exportador de soja do mundo, sofreu com uma seca severa em 2021. Este ano, a safra de trigo da China está entre as piores de todos os tempos. As altas temperaturas na Índia – 45 graus Celsius em março e abril – atingiram em cheio seu “cordão do trigo”, ao passo que sua supersafra no ano passado compensou parcialmente as safras ruins de outros exportadores, como Canadá e Argentina. Na semana passada, o Departamento de Agricultura do governo dos Estados Unidos divulgou relatório com previsão de queda na produção global de trigo na safra de 2022-23 e nos níveis de estoques reguladores.

Um choque adicional veio com a invasão da Ucrânia pela Rússia no final de fevereiro. Quase um terço do trigo e da cevada no mundo e dois terços das exportações globais de óleo de girassol vêm dos dois países. A Ucrânia é o maior exportador de milho do mundo. O conflito danificou portos e a infraestrutura agrícola da Ucrânia e isso certamente limitará a produção agrícola do país por anos.

O volume de grãos produzidos na Ucrânia caiu de 5 milhões de toneladas mensais para 500 mil. O comunicado pós-reunião de ministros de relações exteriores do G7 na Alemanha, sábado passado (14), alertou para uma crise global de fome caso não se encontrem meios alternativos de exportação de grãos do país por via terrestre. Segundo a ministra alemã, Annalena Baerbock, cerca de 25 toneladas de grãos estão bloqueadas por forças armadas russas em portos ucranianos. Por seu turno, as sanções ocidentais à Rússia levaram alguns compradores a evitar comprar grãos da Rússia.

O choque de preços de energia causado pela invasão russa também exercerá impacto sobre preços de alimentos. A disparada de preços de fertilizantes refletiu não apenas a reserva para vizinhos anunciada pela Rússia, mas também o fato de que, por exemplo, a produção de fertilizantes com base em nitrogênio usa intensivamente o gás natural encarecido. Rússia e seu aliado Belarus mineram quase 40% do potássio mundial que serve de insumo para outro tipo de fertilizante. Preços mais altos de fertilizantes serão sentidos nas safras em curso.

Não bastasse tudo isso, a título de “segurança alimentar”, restrições à exportação e à estocagem de produtos básicos para evitar futuras escassezes vêm sendo praticadas por países já desde a pandemia, com consequências sobre a oferta no mercado global. Trinta e cinco países adotaram controles de exportação nos últimos dois anos. Paralelos podem ser feitos com o que ocorreu na crise global de preços de alimentos em 2007-08.

O Cazaquistão, por exemplo, segundo maior exportador mundial de farinha de trigo e revendedor de grãos russos, proibiu exportações. Sábado passado (14), a Índia, que está entre os 10 maiores exportadores de trigo no mundo, anunciou um banimento de vendas no exterior. O impacto sobre preços globais começou a ser visto na última segunda-feira (16).

E os exemplos de protecionismo via banimento de vendas externas se seguem. A Indonésia, responsável por 75% da produção mundial de azeite de dendê, proibiu exportações no final de abril para garantir o fornecimento doméstico de óleo de cozinha. Na verdade, o explosivo aumento nos preços de alimentos em geral tem sido até maior no caso de óleos vegetais de cozinha.

A alta dos preços dos alimentos e, em alguns países, os riscos de levantes sociais levaram a um aumento no número de exportadores proibindo vendas externas ou estabelecendo taxas ou cotas. Essas medidas protecionistas aumentaram ainda mais a conta de importação de alimentos para países dependentes de mercados internacionais para o suprimento doméstico de commodities alimentares, atingindo alguns dos mais pobres do mundo.

O impacto da crise em curso está sendo diferenciado por regiões e níveis de desenvolvimento econômico. Em países do Oriente Médio e do Norte da África, o trigo representa de 50% a 70% do total de grãos consumidos, e é importado principalmente de Rússia e Ucrânia. Cabe lembrar que os preços de trigo foram um dos gatilhos da “primavera árabe” no início da década passada.

As proporções do trigo no consumo de grãos na Ásia e na América Latina são menores: 29% e 16%, respectivamente. Por seu turno, o relatório regional do FMI para a África Subsaariana de abril trouxe alertas sobre como o aumento dos preços do petróleo e dos alimentos está pressionando os saldos externos e fiscais dos países importadores de commodities, aumentando as preocupações com a segurança alimentar na região.

De qualquer modo, ninguém pode afirmar estar ileso em relação ao choque de preços de alimentos. Particularmente no caso das economias mais pobres, para as quais a parcela dos alimentos na cesta de consumo é significativa. No ano passado, o Banco Mundial estimou algo em torno de 100 milhões de pessoas no mundo sendo empurradas para baixo da linha de pobreza de 1,90 dólar por dia, número acrescido pelos choques em vigor desde a invasão da Ucrânia.

E quanto a políticas nacionais de mitigação dos efeitos dos aumentos de preços de alimentos – não de agravamento, como no caso de protecionismo que mencionamos? O relatório “Monitor Fiscal” do FMI de abril traz um levantamento de medidas tomadas em 94 países, feito pelo economista Roberto Perreli. Em muitos casos, subsídios diretos têm sido dados nos preços ao consumidor, enquanto outros estabeleceram subsídios para sementes e fertilizantes usados por fazendeiros, além de programas de distribuição de alimentos em espécie. A fragilidade fiscal herdada da pandemia está limitando tais programas públicos em muitos países em desenvolvimento.



Otaviano Canuto é membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente do Brookings Institute, professor na Elliott School of International Affairs da George Washington University e principal do Center for Macroeconomics and Development em Washington. Foi vice-presidente e diretor-executivo no Banco Mundial, diretor-executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de Assuntos Internacionais no Ministério da Fazenda e professor da USP e da Unicamp.


COLUNA PUBLICADA NA FOLHA DE S. PAULO

 

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Por que os preços globais de alimentos estão em choque

A combinação de praga da pandemia, guerra na Ucrânia e secas nos últimos dois anos parece ter saído da Bíblia. Agora, essa combinação está possivelmente incorporando a fome, com a crise de preços de alimentos, em parte do mundo.

O índice de preços mundiais de alimentos, coletado há 60 anos pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, em inglês), atingiu seu recorde em março, declinando suavemente em abril.

A elevação dos preços globais dos alimentos começou em meados de 2020, quando confinamentos e restrições em cadeias de suprimento ocorreram durante a corrida por estocagem de alimentos. Restrições de mobilidade de mão de obra migrante afetaram colheitas em boa parte do mundo.

Desde então, fenômenos climáticos também trouxeram problemas com as principais culturas em muitas partes do mundo. O Brasil, o maior exportador de soja do mundo, sofreu com uma seca severa em 2021. Este ano, a safra de trigo da China está entre as piores de todos os tempos. As altas temperaturas na Índia – 45 graus Celsius em março e abril – atingiram em cheio seu “cordão do trigo”, ao passo que sua supersafra no ano passado compensou parcialmente as safras ruins de outros exportadores, como Canadá e Argentina. Na semana passada, o Departamento de Agricultura do governo dos Estados Unidos divulgou relatório com previsão de queda na produção global de trigo na safra de 2022-23 e nos níveis de estoques reguladores.

Um choque adicional veio com a invasão da Ucrânia pela Rússia no final de fevereiro. Quase um terço do trigo e da cevada no mundo e dois terços das exportações globais de óleo de girassol vêm dos dois países. A Ucrânia é o maior exportador de milho do mundo. O conflito danificou portos e a infraestrutura agrícola da Ucrânia e isso certamente limitará a produção agrícola do país por anos.

O volume de grãos produzidos na Ucrânia caiu de 5 milhões de toneladas mensais para 500 mil. O comunicado pós-reunião de ministros de relações exteriores do G7 na Alemanha, sábado passado (14), alertou para uma crise global de fome caso não se encontrem meios alternativos de exportação de grãos do país por via terrestre. Segundo a ministra alemã, Annalena Baerbock, cerca de 25 toneladas de grãos estão bloqueadas por forças armadas russas em portos ucranianos. Por seu turno, as sanções ocidentais à Rússia levaram alguns compradores a evitar comprar grãos da Rússia.

O choque de preços de energia causado pela invasão russa também exercerá impacto sobre preços de alimentos. A disparada de preços de fertilizantes refletiu não apenas a reserva para vizinhos anunciada pela Rússia, mas também o fato de que, por exemplo, a produção de fertilizantes com base em nitrogênio usa intensivamente o gás natural encarecido. Rússia e seu aliado Belarus mineram quase 40% do potássio mundial que serve de insumo para outro tipo de fertilizante. Preços mais altos de fertilizantes serão sentidos nas safras em curso.

Não bastasse tudo isso, a título de “segurança alimentar”, restrições à exportação e à estocagem de produtos básicos para evitar futuras escassezes vêm sendo praticadas por países já desde a pandemia, com consequências sobre a oferta no mercado global. Trinta e cinco países adotaram controles de exportação nos últimos dois anos. Paralelos podem ser feitos com o que ocorreu na crise global de preços de alimentos em 2007-08.

O Cazaquistão, por exemplo, segundo maior exportador mundial de farinha de trigo e revendedor de grãos russos, proibiu exportações. Sábado passado (14), a Índia, que está entre os 10 maiores exportadores de trigo no mundo, anunciou um banimento de vendas no exterior. O impacto sobre preços globais começou a ser visto na última segunda-feira (16).

E os exemplos de protecionismo via banimento de vendas externas se seguem. A Indonésia, responsável por 75% da produção mundial de azeite de dendê, proibiu exportações no final de abril para garantir o fornecimento doméstico de óleo de cozinha. Na verdade, o explosivo aumento nos preços de alimentos em geral tem sido até maior no caso de óleos vegetais de cozinha.

A alta dos preços dos alimentos e, em alguns países, os riscos de levantes sociais levaram a um aumento no número de exportadores proibindo vendas externas ou estabelecendo taxas ou cotas. Essas medidas protecionistas aumentaram ainda mais a conta de importação de alimentos para países dependentes de mercados internacionais para o suprimento doméstico de commodities alimentares, atingindo alguns dos mais pobres do mundo.

O impacto da crise em curso está sendo diferenciado por regiões e níveis de desenvolvimento econômico. Em países do Oriente Médio e do Norte da África, o trigo representa de 50% a 70% do total de grãos consumidos, e é importado principalmente de Rússia e Ucrânia. Cabe lembrar que os preços de trigo foram um dos gatilhos da “primavera árabe” no início da década passada.

As proporções do trigo no consumo de grãos na Ásia e na América Latina são menores: 29% e 16%, respectivamente. Por seu turno, o relatório regional do FMI para a África Subsaariana de abril trouxe alertas sobre como o aumento dos preços do petróleo e dos alimentos está pressionando os saldos externos e fiscais dos países importadores de commodities, aumentando as preocupações com a segurança alimentar na região.

De qualquer modo, ninguém pode afirmar estar ileso em relação ao choque de preços de alimentos. Particularmente no caso das economias mais pobres, para as quais a parcela dos alimentos na cesta de consumo é significativa. No ano passado, o Banco Mundial estimou algo em torno de 100 milhões de pessoas no mundo sendo empurradas para baixo da linha de pobreza de 1,90 dólar por dia, número acrescido pelos choques em vigor desde a invasão da Ucrânia.

E quanto a políticas nacionais de mitigação dos efeitos dos aumentos de preços de alimentos – não de agravamento, como no caso de protecionismo que mencionamos? O relatório “Monitor Fiscal” do FMI de abril traz um levantamento de medidas tomadas em 94 países, feito pelo economista Roberto Perreli. Em muitos casos, subsídios diretos têm sido dados nos preços ao consumidor, enquanto outros estabeleceram subsídios para sementes e fertilizantes usados por fazendeiros, além de programas de distribuição de alimentos em espécie. A fragilidade fiscal herdada da pandemia está limitando tais programas públicos em muitos países em desenvolvimento.



Otaviano Canuto é membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente do Brookings Institute, professor na Elliott School of International Affairs da George Washington University e principal do Center for Macroeconomics and Development em Washington. Foi vice-presidente e diretor-executivo no Banco Mundial, diretor-executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de Assuntos Internacionais no Ministério da Fazenda e professor da USP e da Unicamp.


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