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Facilitar o acesso dos “cidadãos de bem” a armas de fogo foi uma das promessas de campanha do atual governo.

Promessa cumprida? Para os defensores das armas, o decreto recém-promulgado foi tímido. As ações de empresas do setor de armamento, inclusive, caíram, possivelmente porque se esperava mais. Ao menos até aqui, a maioria das exigências preexistentes segue valendo: exame psicológico, idade mínima de 25 anos, ausência de antecedentes criminais, lugar seguro para armazenar a arma em casa de família, treinamento obrigatório em clube de tiro, etc.

O porte nas ruas segue proibido. O que mudou foi a estrutura burocrática da liberação: mantidas aquelas exigências, a discricionariedade da Polícia Federal na concessão do porte legal reduziu-se, ou seja, não há mais a análise caso a caso e seus consequentes atrasos. Se o demandante vive no interior ou em cidades com homicídios per capita acima de 10 por 100 mil, ele automaticamente se qualifica.  Finalmente, a renovação vale por 10 anos agora, não mais por cinco.

Entendido o decreto, a discussão relevante é: ele vai ajudar a sociedade na questão que hoje mais preocupa o cidadão, a segurança?

Que haverá mais armas por aí é praticamente certo, dado que ficou mais rápido e menos burocrático se armar; o que não podemos saber é quantas mais. Mas certamente (e felizmente) não vamos virar um faroeste, dado que os pré-requisitos para a posse legal seguem intactos.

E o homicídio, hoje na faixa de 30 por 100 mil habitantes no Brasil, vai aumentar ou cair?

Em teoria, é difícil dizer, dada a multiplicidade de efeitos envolvidos. Os defensores das armas têm um argumento coerente para defender sua posição: com o cidadão armado, o risco para o assaltante em atividade se eleva. E o assaltante não é tolo, entende isso perfeitamente. No nosso linguajar, o “custo” de roubar subiu, e custos mais altos levam a menor “oferta”. Nesse caso, oferta de assaltos!

O problema é que a história não é tão simples. Primeiro, para muitos (mas não todos) dos envolvidos na prática de crimes, a elasticidade-custo (ou seja, quanto se reduz a prática do assalto em vista do aumento do custo de assaltar) é baixa. O cara já está tão imerso no mundo do crime que um aumento do custo de assaltar dificilmente o fará buscar outro emprego, ou ficar mais tempo em casa assistindo TV.

Porém, verdade seja dita, com mais cidadãos armados, o assaltante tem mais probabilidade de ser morto no “trabalho”. A diminuição dos crimes viria assim via margem extensiva (menos “empresas” no mercado, em vez de empresas produzindo menos). Isso tudo no curto/médio prazo.

Além disso, há que se considerar o efeito sobre a escolha laboral de quem ainda não entrou para a criminalidade. Esses sim possuem uma elasticidade mais elevada, pois ainda têm a opção de não ingressar num ramo de atividade que, com mais cidadãos armados, se tornou mais arriscado/custoso para o bandido.

Há, contudo, outra margem de ajuste que empurra os homicídios na direção de alta. Ponha-se o leitor na pele do assaltante. Ele está mais arisco agora, pois entende que é mais provável que você, o assaltado, tenha uma arma. Como você acha que ele vai reagir? Resposta: vai atirar para matar com maior probabilidade do que antes. O mínimo movimento vai ser interpretado como “esse aí vai sacar uma arma para me matar”. Difícil dimensionar a importância desse efeito, mas ele vai na direção do “mais armas, mais homicídios”.

Porém, o argumento mais usado pelos antiarmas é outro, mais direto e igualmente relevante: ocorrerão mais mortes “bobas”. Seja por acidente, como nos casos de menores que vão brincar com a arma do pai, seja em brigas que, com menos armas disponíveis, terminariam com uma troca de xingamentos ou, no máximo, de sopapos. Isso é muito real, muito sério; o córtex pré-frontal nos abandona completamente em momentos de ódio intenso, e agimos, para nosso próprio arrependimento futuro, de modo irracional, sacando uma arma por um nada. O último ponto teórico: com mais armas legalmente em circulação, mais fácil para os bandidos pôr a mão em uma delas.

Resumidamente, o efeito final pode acabar indo para qualquer lado. Apenas os dados podem nos ajudar a entender quem prevalece.

Mas será que podem mesmo? Não basta, para o grupo antiarmas, citar evidências de que locais onde há mais acesso a armas há também mais homicídios. Isso não prova uma relação causal. A causalidade pode ser totalmente a reversa: mais gente anda armada justamente porque o local é muito perigoso. Muita gente morre nos hospitais, mas não queremos fechar os hospitais por isso!

A análise precisa ser mais cuidadosa para escapar dessa armadilha da causalidade reversa, por exemplo explorando o impacto de uma mudança na legislação que facilite/dificulte a aquisição de armas. Há alguns desses estudos feitos para diferentes países, e a maioria indica que mais armas levam, no sentido causal, a mais homicídios, não menos[1].

https://youtu.be/d7o_a_5LW3Y

A tese de doutorado de Rodrigo Schneider, jovem professor da Universidade Skidmore, trata do caso brasileiro diretamente[2]. Rodrigo usa a aprovação do Estatuto do Desarmamento em 2003 (que proibiu o porte de armas nas ruas) como base de sua estratégia empírica.  Resumidamente, ele computou o que ocorreu com homicídios provocados por armas de fogo antes e depois da aprovação do Estatuto. Os gráficos abaixo, retirados do citado trabalho, contam uma história clara: as mortes por uso de arma caíram quando a circulação de armas se reduziu.

O que torna o achado empírico mais crível é o fato de que os homicídios cometidos sem uso de armas de fogo não caíram após o marco a aprovação do Estatuto (linha com marco zero no gráfico). Isso sugere que não se trata de uma queda causada por fatores que simultaneamente afetam a taxa de homicídios cometidos com e sem o uso de armas. Só os cometidos com armas caem, ou seja, só os diretamente ligados à mudança legal. Por fim, como fica claro, a restrição ao uso de armas não faz milagres: a tendência de alta pouco se alterou, ainda que o nível todo tenha se deslocado para baixo após a reforma.

Concluindo:  tornar mais fácil a aquisição de armas não parece ajudar a reduzir a violência.



 

Os pontos nos gráficos mostram o número de homicídios em comparação com o marco zero, ou seja, a aprovação do Estatuto. Por exemplo, ali pelos 50 meses antes da aprovação, os homicídios não relacionados a armas eram aproximadamente 8% mais baixos do que quando da aprovação. A partir da aprovação, a trajetória desses homicidios não causados por armas segue uma trajetória contínua, sem mudanças. Já o gráfico de homicídios provocados por armas de fogo apresenta uma clara descontinuidade nos meses que seguem a aprovação do Estatuto.  Vê-se uma redução significativa na comparação “logo depois/logo antes”.

*

[1] Ver, por exemplo, “More Guns, More Crime”, de Mark Duggan, publicado no prestigioso Journal of Political Economy, 2001.

[2] “Crime and political effects of a concealed weapons ban in Brazil”, working paper, 2017.

 

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Posse de armas: mais segurança ou mais mortes? A teoria e os dados respondem!

Facilitar o acesso dos “cidadãos de bem” a armas de fogo foi uma das promessas de campanha do atual governo. Promessa cumprida? Para os defensores das armas, o decreto recém-promulgado foi tímido. As ações de empresas do setor de armamento, inclusive, caíram, possivelmente porque se esperava mais. Ao menos até aqui, a maioria das exigências preexistentes segue valendo: exame psicológico, idade mínima de 25 anos, ausência de antecedentes criminais, lugar seguro para armazenar a arma em casa de família, treinamento obrigatório em clube de tiro, etc. O porte nas ruas segue proibido. O que mudou foi a estrutura burocrática da liberação: mantidas aquelas exigências, a discricionariedade da Polícia Federal na concessão do porte legal reduziu-se, ou seja, não há mais a análise caso a caso e seus consequentes atrasos. Se o demandante vive no interior ou em cidades com homicídios per capita acima de 10 por 100 mil, ele automaticamente se qualifica.  Finalmente, a renovação vale por 10 anos agora, não mais por cinco. Entendido o decreto, a discussão relevante é: ele vai ajudar a sociedade na questão que hoje mais preocupa o cidadão, a segurança? Que haverá mais armas por aí é praticamente certo, dado que ficou mais rápido e menos burocrático se armar; o que não podemos saber é quantas mais. Mas certamente (e felizmente) não vamos virar um faroeste, dado que os pré-requisitos para a posse legal seguem intactos. E o homicídio, hoje na faixa de 30 por 100 mil habitantes no Brasil, vai aumentar ou cair? Em teoria, é difícil dizer, dada a multiplicidade de efeitos envolvidos. Os defensores das armas têm um argumento coerente para defender sua posição: com o cidadão armado, o risco para o assaltante em atividade se eleva. E o assaltante não é tolo, entende isso perfeitamente. No nosso linguajar, o “custo” de roubar subiu, e custos mais altos levam a menor “oferta”. Nesse caso, oferta de assaltos! O problema é que a história não é tão simples. Primeiro, para muitos (mas não todos) dos envolvidos na prática de crimes, a elasticidade-custo (ou seja, quanto se reduz a prática do assalto em vista do aumento do custo de assaltar) é baixa. O cara já está tão imerso no mundo do crime que um aumento do custo de assaltar dificilmente o fará buscar outro emprego, ou ficar mais tempo em casa assistindo TV. Porém, verdade seja dita, com mais cidadãos armados, o assaltante tem mais probabilidade de ser morto no “trabalho”. A diminuição dos crimes viria assim via margem extensiva (menos “empresas” no mercado, em vez de empresas produzindo menos). Isso tudo no curto/médio prazo. Além disso, há que se considerar o efeito sobre a escolha laboral de quem ainda não entrou para a criminalidade. Esses sim possuem uma elasticidade mais elevada, pois ainda têm a opção de não ingressar num ramo de atividade que, com mais cidadãos armados, se tornou mais arriscado/custoso para o bandido. Há, contudo, outra margem de ajuste que empurra os homicídios na direção de alta. Ponha-se o leitor na pele do assaltante. Ele está mais arisco agora, pois entende que é mais provável que você, o assaltado, tenha uma arma. Como você acha que ele vai reagir? Resposta: vai atirar para matar com maior probabilidade do que antes. O mínimo movimento vai ser interpretado como “esse aí vai sacar uma arma para me matar”. Difícil dimensionar a importância desse efeito, mas ele vai na direção do “mais armas, mais homicídios”. Porém, o argumento mais usado pelos antiarmas é outro, mais direto e igualmente relevante: ocorrerão mais mortes “bobas”. Seja por acidente, como nos casos de menores que vão brincar com a arma do pai, seja em brigas que, com menos armas disponíveis, terminariam com uma troca de xingamentos ou, no máximo, de sopapos. Isso é muito real, muito sério; o córtex pré-frontal nos abandona completamente em momentos de ódio intenso, e agimos, para nosso próprio arrependimento futuro, de modo irracional, sacando uma arma por um nada. O último ponto teórico: com mais armas legalmente em circulação, mais fácil para os bandidos pôr a mão em uma delas. Resumidamente, o efeito final pode acabar indo para qualquer lado. Apenas os dados podem nos ajudar a entender quem prevalece. Mas será que podem mesmo? Não basta, para o grupo antiarmas, citar evidências de que locais onde há mais acesso a armas há também mais homicídios. Isso não prova uma relação causal. A causalidade pode ser totalmente a reversa: mais gente anda armada justamente porque o local é muito perigoso. Muita gente morre nos hospitais, mas não queremos fechar os hospitais por isso! A análise precisa ser mais cuidadosa para escapar dessa armadilha da causalidade reversa, por exemplo explorando o impacto de uma mudança na legislação que facilite/dificulte a aquisição de armas. Há alguns desses estudos feitos para diferentes países, e a maioria indica que mais armas levam, no sentido causal, a mais homicídios, não menos[1]. https://youtu.be/d7o_a_5LW3Y A tese de doutorado de Rodrigo Schneider, jovem professor da Universidade Skidmore, trata do caso brasileiro diretamente[2]. Rodrigo usa a aprovação do Estatuto do Desarmamento em 2003 (que proibiu o porte de armas nas ruas) como base de sua estratégia empírica.  Resumidamente, ele computou o que ocorreu com homicídios provocados por armas de fogo antes e depois da aprovação do Estatuto. Os gráficos abaixo, retirados do citado trabalho, contam uma história clara: as mortes por uso de arma caíram quando a circulação de armas se reduziu. O que torna o achado empírico mais crível é o fato de que os homicídios cometidos sem uso de armas de fogo não caíram após o marco a aprovação do Estatuto (linha com marco zero no gráfico). Isso sugere que não se trata de uma queda causada por fatores que simultaneamente afetam a taxa de homicídios cometidos com e sem o uso de armas. Só os cometidos com armas caem, ou seja, só os diretamente ligados à mudança legal. Por fim, como fica claro, a restrição ao uso de armas não faz milagres: a tendência de alta pouco se alterou, ainda que o nível todo tenha se deslocado para baixo após a reforma. Concluindo:  tornar mais fácil a aquisição de armas não parece ajudar a reduzir a violência.   Os pontos nos gráficos mostram o número de homicídios em comparação com o marco zero, ou seja, a aprovação do Estatuto. Por exemplo, ali pelos 50 meses antes da aprovação, os homicídios não relacionados a armas eram aproximadamente 8% mais baixos do que quando da aprovação. A partir da aprovação, a trajetória desses homicidios não causados por armas segue uma trajetória contínua, sem mudanças. Já o gráfico de homicídios provocados por armas de fogo apresenta uma clara descontinuidade nos meses que seguem a aprovação do Estatuto.  Vê-se uma redução significativa na comparação “logo depois/logo antes”. * [1] Ver, por exemplo, “More Guns, More Crime”, de Mark Duggan, publicado no prestigioso Journal of Political Economy, 2001. [2] “Crime and political effects of a concealed weapons ban in Brazil”, working paper, 2017.   Para ficar por dentro do que rola no Por Quê?, clique aqui e assine a nossa Newsletter.
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