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Um presidente usa o poder do Estado para buscar informações comprometedoras sobre seu adversário político. Depois decide sediar um megaencontro internacional em uma propriedade sua. Por incrível que pareça, não estamos falando do Brasil, de outro país da América Latina, ou de uma república do Leste Europeu comandada por um autocrata. Estamos falando dos Estados Unidos, um dos países mais influentes do mundo e com padrão de vida médio bastante elevado.

Conhecemos muito bem essa história de mistura de público e privado aqui no Brasil. No limite, essas relações descambam em casos de corrupção, como os que foram desvendados pela Operação Lava Jato. Muita gente acha que os custos resumem-se ao dinheiro desviado para os bolsos de gestores, políticos e empresários ligados ao poder – que poderia ser usado para prover serviços públicos à população, por exemplo.

Mas esse não é o principal efeito sobre o bem-estar de um país. Na verdade, o roubo não precisa nem ocorrer – no caso dos Estados Unidos de Trump, nem temos evidência disso. A confusão entre público e privado já é suficiente para gerar custos para a sociedade.

Isso porque há uma expectativa de favorecimento por parte de indivíduos e empresas. A proximidade com o poder pode gerar ganhos privados. Firmas e empresários passam então a investir mais nessas relações do que em inovar, melhorar produtos, adotar métodos mais eficientes etc. Quem se favorece são os amigos do rei, e não necessariamente os agentes mais produtivos. Tudo isso pode tornar a economia menos eficiente.

Há potenciais ramificações sobre competição política, o que contribui para manter essa situação. No Brasil isso foi alimentado pelo dinheiro da corrupção, que em parte retornava a políticos na forma de contribuições em campanhas gordas.

Claro que os Estados Unidos não chegam nem perto do que estamos acostumados a ver no Brasil, provavelmente desde o descobrimento. Mas as atitudes recentes do presidente Trump, que revelam uma mistura perversa de interesses pessoais e política pública, levantam preocupações para o longo prazo. Dois acontecimentos deixam o ponto mais claro.

Primeiro, Trump pressionou o recém-eleito presidente da Ucrânia – Volodymyr Zelenski – a investigar Joe Biden, que foi vice-presidente na gestão Obama e constitui uma das principais ameaças à sua reeleição em 2020. Cada vez temos mais indícios de que o governo americano bloqueou um pacote de ajuda externa para a Ucrânia, à espera de que as reivindicações de Trump fossem atendidas.

Segundo, na semana passada a Casa Branca indicou que o próximo encontrodo G7 será realizado no National Doral Miami Golf Course – que é de propriedade de Trump.

Tudo isso indica a predisposição do presidente a usar o poder do Estado em benefício pessoal – seja para aumentar suas chances de reeleição, seja para alavancar seu resort.

Porém, o que mais assusta é o governo americano não fazer questão nenhuma de negar esses fatos, e mais: trata tudo como se fosse normal. É aí que mora o verdadeiro perigo. Se a classe política e a população também julgarem que esse estado de coisas é aceitável, ele tenderá a se perpetuar. Principalmente se políticos não tiverem punição por comportamentos que misturem o público e o privado.

Aparentemente, a repercussão negativa durante o fim de semana (inclusive entre membros do próprio Partido Republicano) foi suficiente para que o presidente desistisse da ideia de sediar o encontro do G7 em sua propriedade.  Ainda falta acontecer algo do tipo em relação ao caso bem mais grave relacionado à Ucrânia, o que provavelmente envolveria o impeachment de Trump. Mas esta possibilidade parece bem remota no momento.

Não dá para afirmar que os Estados Unidos se transformarão no Brasil daqui a algumas décadas. A tendência é, entretanto, preocupante.



COLUNA PUBLICADA NA FOLHA DE SÃO PAULO


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A perigosa confusão entre público e privado (este texto não é sobre o Brasil)

Um presidente usa o poder do Estado para buscar informações comprometedoras sobre seu adversário político. Depois decide sediar um megaencontro internacional em uma propriedade sua. Por incrível que pareça, não estamos falando do Brasil, de outro país da América Latina, ou de uma república do Leste Europeu comandada por um autocrata. Estamos falando dos Estados Unidos, um dos países mais influentes do mundo e com padrão de vida médio bastante elevado.

Conhecemos muito bem essa história de mistura de público e privado aqui no Brasil. No limite, essas relações descambam em casos de corrupção, como os que foram desvendados pela Operação Lava Jato. Muita gente acha que os custos resumem-se ao dinheiro desviado para os bolsos de gestores, políticos e empresários ligados ao poder – que poderia ser usado para prover serviços públicos à população, por exemplo.

Mas esse não é o principal efeito sobre o bem-estar de um país. Na verdade, o roubo não precisa nem ocorrer – no caso dos Estados Unidos de Trump, nem temos evidência disso. A confusão entre público e privado já é suficiente para gerar custos para a sociedade.

Isso porque há uma expectativa de favorecimento por parte de indivíduos e empresas. A proximidade com o poder pode gerar ganhos privados. Firmas e empresários passam então a investir mais nessas relações do que em inovar, melhorar produtos, adotar métodos mais eficientes etc. Quem se favorece são os amigos do rei, e não necessariamente os agentes mais produtivos. Tudo isso pode tornar a economia menos eficiente.

Há potenciais ramificações sobre competição política, o que contribui para manter essa situação. No Brasil isso foi alimentado pelo dinheiro da corrupção, que em parte retornava a políticos na forma de contribuições em campanhas gordas.

Claro que os Estados Unidos não chegam nem perto do que estamos acostumados a ver no Brasil, provavelmente desde o descobrimento. Mas as atitudes recentes do presidente Trump, que revelam uma mistura perversa de interesses pessoais e política pública, levantam preocupações para o longo prazo. Dois acontecimentos deixam o ponto mais claro.

Primeiro, Trump pressionou o recém-eleito presidente da Ucrânia – Volodymyr Zelenski – a investigar Joe Biden, que foi vice-presidente na gestão Obama e constitui uma das principais ameaças à sua reeleição em 2020. Cada vez temos mais indícios de que o governo americano bloqueou um pacote de ajuda externa para a Ucrânia, à espera de que as reivindicações de Trump fossem atendidas.

Segundo, na semana passada a Casa Branca indicou que o próximo encontrodo G7 será realizado no National Doral Miami Golf Course – que é de propriedade de Trump.

Tudo isso indica a predisposição do presidente a usar o poder do Estado em benefício pessoal – seja para aumentar suas chances de reeleição, seja para alavancar seu resort.

Porém, o que mais assusta é o governo americano não fazer questão nenhuma de negar esses fatos, e mais: trata tudo como se fosse normal. É aí que mora o verdadeiro perigo. Se a classe política e a população também julgarem que esse estado de coisas é aceitável, ele tenderá a se perpetuar. Principalmente se políticos não tiverem punição por comportamentos que misturem o público e o privado.

Aparentemente, a repercussão negativa durante o fim de semana (inclusive entre membros do próprio Partido Republicano) foi suficiente para que o presidente desistisse da ideia de sediar o encontro do G7 em sua propriedade.  Ainda falta acontecer algo do tipo em relação ao caso bem mais grave relacionado à Ucrânia, o que provavelmente envolveria o impeachment de Trump. Mas esta possibilidade parece bem remota no momento.

Não dá para afirmar que os Estados Unidos se transformarão no Brasil daqui a algumas décadas. A tendência é, entretanto, preocupante.








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