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							No início deste mês, a secretária do Tesouro dos Estados Unidos, Janet Yellen, comunicou aos líderes no Congresso que o governo pode ficar sem dinheiro já em 1º de junho se o teto da dívida pública não for elevado ou suspenso a tempo. Em janeiro, o Tesouro atingiu o atual teto legalmente estabelecido em termos nominais (US$ 31,46 trilhões) e os fundos estabelecidos para efetuar pagamentos correntes do governo deverão se exaurir até o fim do mês de maio.

A arrecadação tributária neste ano está longe de cobrir todos os compromissos de despesas, incluindo aí o serviço da dívida existente. Segundo o Departamento do Tesouro:

“Deixar de aumentar o limite da dívida teria consequências econômicas catastróficas. Isso faria com que o governo deixasse de cumprir suas obrigações legais – um evento sem precedentes na história americana. Isso precipitaria outra crise financeira e ameaçaria os empregos e as economias dos americanos comuns – colocando os Estados Unidos de volta em um profundo buraco econômico, num momento em que o país ainda está se recuperando da recente recessão.”

O teto nominal de dívida é uma medida bruta e rudimentar de barreira contra excesso de endividamento público nos Estados Unidos. Não apenas porque encolhe o valor real da inflação, mas também diante da expansão em termos absolutos da economia, das funções governamentais e dos desejos de sua acumulação por compradores dos títulos considerados como “porto seguro” de baixo risco para investidores no mundo – pelo menos quando não há o dano autoimposto pelo limite nominal de dívida.

Na verdade, o teto da dívida remonta a 1939, quando o Congresso consolidou várias formas de dívida em um limite de dívida agregado. A partir daí, o limite da dívida aumentou consistentemente cada vez que o estoque da dívida pública se aproximava do limite.

Como observou o Tesouro, de 1960 para cá, o limite da dívida foi aumentado, de alguma forma, 78 vezes – 49 vezes sob presidentes republicanos e 29 vezes sob presidentes democratas – a fim de evitar a inadimplência nos pagamentos de juros do Tesouro e manter o governo funcionando.

Às vezes com turbulência e ruídos. Em 1979, por exemplo, o Tesouro teve de atrasar pagamentos de títulos. Foi então estabelecida uma regra permitindo que a Câmara aumentasse automaticamente o limite da dívida por meio de resolução orçamentária sem exigir votação em separado. Essa regra chegou a ser utilizada 15 vezes para aumentar o limite da dívida.

No entanto, aquela regra foi revogada em 2011, quando o governo Obama encarou um Congresso com forte presença do Tea Party republicano. Viu-se desde então batalhas prolongadas sobre o aumento do teto da dívida em 2011, 2013 e 2021. Não durante o governo Trump! É importante realçar que o episódio de 2011 resultou até no rebaixamento da classificação de crédito dos Estados Unidos pela S&P, do nível máximo AAA até AA+, onde permanece (tais classificações por agências estão explicadas aqui).

Tem-se, portanto, uma repetição agora desses momentos de tensão por causa de um aparente impasse na decisão congressual sobre adiar ou aliviar a restrição do teto. Os republicanos, com leve maioria na Câmara de Deputados, conseguiram no final de abril a aprovação de um projeto de lei que aumentaria o teto da dívida em US$ 1,5 trilhão e chutaria o risco até o próximo ano. Mas veio com a contrapartida de encolhimento de despesas em programas caros aos democratas. Não seria aceito pelo Senado majoritariamente democrata nem pela Casa Branca.

Para que se tenha uma ideia da percepção de riscos de calote pelos mercados, os credit default swaps (CDS) – derivativos que funcionam como seguros e pagam se uma empresa, ou país, renegar seus empréstimos – para títulos do Tesouro de um ano estavam, na semana passada, mais altos que os equivalentes para a Grécia, o México e o Brasil! Para títulos mais longos, como os de 5 anos, a situação não esteve tão anormal. Mas os spreads entre os títulos do Tesouro de 1 e 3 meses atingiram uma alta recorde até 180 pontos básicos.

Permanece a esperança de que a Casa Branca e os republicanos alcancem um acordo a tempo de evitar o que Yellen chamou de “impensável” e “catastrófico”. No centro das negociações estão limites no gasto doméstico, com republicanos demandando cortes profundos em muitos programas nos próximos 10 anos, enquanto democratas aceitam cortes mais modestos por 2 anos.

A Casa Branca recusa a demanda republicana de reversão dos créditos tributários para energia limpa que foram aprovados no ano passado, bem como das medidas de alívio de dívida de estudantes. Também não aceita o estabelecimento de exigências de trabalho em programas contra a pobreza e na rede de proteção social, como também querem os republicanos.

Caso não haja acordo a tempo, o Tesouro ver-se-á obrigado a atrasar pagamentos de salários, fechar temporariamente algumas atividades públicas e, no limite, não cumprir com pagamentos de juros da dívida. Na hipótese de algum rebaixamento adicional na classificação de risco de crédito por alguma agência além da S&P, muitos gerentes de ativos ver-se-iam obrigados a tirar títulos do Tesouro dos Estados Unidos de suas caixinhas de ativos AAA.

Na quinta-feira da semana passada, o Fundo Monetário Internacional chamou atenção para as graves consequências de alguma inadimplência pelo setor público dos Estados Unidos, mesmo que temporária, para o país e a economia global. Ninguém pode dizer quais seriam as reações em cadeia de um choque justamente no “porto seguro” de baixo risco das finanças globais.

Como se não bastassem os choques sofridos ao longo da “tempestade perfeita” dos últimos anos! Com a diferença de que, no caso, não se trata de mercados suspendendo rolagem de dívida por considerá-la insolvente, mas de uma barreira politicamente autoimposta pelo país. Preocupam as ocasionais referências por republicanos – inclusive o ex-presidente Trump – de que um calote e a turbulência em mercados podem ser um preço adequado para obter o corte de gastos públicos.

Há dispositivos legais que correspondem a maneiras de burlar o teto e evitar o que seria a primeira inadimplência do governo federal na história do país: emissão de moeda de platina no valor de US$ 1 trilhão, com seu depósito no Federal Reserve; ou um recurso à 14a emenda da Constituição, onde há menção à possibilidade de emissão de dívida para pagar compromissos sem passar pelo congresso. Tais dispositivos, contudo, contestáveis judicialmente, não foram considerados “boas opções” pela Secretária Yellen. Um acordo com o Congresso acerca do teto de dívida continua sendo a opção mais adequada.

A preocupação com a trajetória da dívida pública dos Estados Unidos esteve contida enquanto durou o período de taxas baixas de juros, particularmente quando inferiores à taxa de crescimento do PIB, como sempre realçou o economista Olivier Blanchard. Agora, faz sentido o que várias vozes como Glen Hubbard e outros têm propugnado, a saber, o estabelecimento de algum arcabouço fiscal para tratar do assunto, em vez de tetos nominais de gasto. Mas essa transição não precisaria acontecer via choques financeiros e uma possibilidade de calote na dívida pública.


Otaviano Canuto foi vice-presidente e diretor executivo no Banco Mundial, diretor executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de assuntos internacionais no Ministério da Fazenda e professor da USP e da Unicamp. Atualmente é membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente da Brookings Institution e professor na Elliott School of International Affairs da George Washington University.

 COLUNA PUBLICADA NA FOLHA DE S. PAULO 


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A possibilidade de calote na dívida pública dos Estados Unidos

No início deste mês, a secretária do Tesouro dos Estados Unidos, Janet Yellen, comunicou aos líderes no Congresso que o governo pode ficar sem dinheiro já em 1º de junho se o teto da dívida pública não for elevado ou suspenso a tempo. Em janeiro, o Tesouro atingiu o atual teto legalmente estabelecido em termos nominais (US$ 31,46 trilhões) e os fundos estabelecidos para efetuar pagamentos correntes do governo deverão se exaurir até o fim do mês de maio.

A arrecadação tributária neste ano está longe de cobrir todos os compromissos de despesas, incluindo aí o serviço da dívida existente. Segundo o Departamento do Tesouro:

“Deixar de aumentar o limite da dívida teria consequências econômicas catastróficas. Isso faria com que o governo deixasse de cumprir suas obrigações legais – um evento sem precedentes na história americana. Isso precipitaria outra crise financeira e ameaçaria os empregos e as economias dos americanos comuns – colocando os Estados Unidos de volta em um profundo buraco econômico, num momento em que o país ainda está se recuperando da recente recessão.”

O teto nominal de dívida é uma medida bruta e rudimentar de barreira contra excesso de endividamento público nos Estados Unidos. Não apenas porque encolhe o valor real da inflação, mas também diante da expansão em termos absolutos da economia, das funções governamentais e dos desejos de sua acumulação por compradores dos títulos considerados como “porto seguro” de baixo risco para investidores no mundo – pelo menos quando não há o dano autoimposto pelo limite nominal de dívida.

Na verdade, o teto da dívida remonta a 1939, quando o Congresso consolidou várias formas de dívida em um limite de dívida agregado. A partir daí, o limite da dívida aumentou consistentemente cada vez que o estoque da dívida pública se aproximava do limite.

Como observou o Tesouro, de 1960 para cá, o limite da dívida foi aumentado, de alguma forma, 78 vezes – 49 vezes sob presidentes republicanos e 29 vezes sob presidentes democratas – a fim de evitar a inadimplência nos pagamentos de juros do Tesouro e manter o governo funcionando.

Às vezes com turbulência e ruídos. Em 1979, por exemplo, o Tesouro teve de atrasar pagamentos de títulos. Foi então estabelecida uma regra permitindo que a Câmara aumentasse automaticamente o limite da dívida por meio de resolução orçamentária sem exigir votação em separado. Essa regra chegou a ser utilizada 15 vezes para aumentar o limite da dívida.

No entanto, aquela regra foi revogada em 2011, quando o governo Obama encarou um Congresso com forte presença do Tea Party republicano. Viu-se desde então batalhas prolongadas sobre o aumento do teto da dívida em 2011, 2013 e 2021. Não durante o governo Trump! É importante realçar que o episódio de 2011 resultou até no rebaixamento da classificação de crédito dos Estados Unidos pela S&P, do nível máximo AAA até AA+, onde permanece (tais classificações por agências estão explicadas aqui).

Tem-se, portanto, uma repetição agora desses momentos de tensão por causa de um aparente impasse na decisão congressual sobre adiar ou aliviar a restrição do teto. Os republicanos, com leve maioria na Câmara de Deputados, conseguiram no final de abril a aprovação de um projeto de lei que aumentaria o teto da dívida em US$ 1,5 trilhão e chutaria o risco até o próximo ano. Mas veio com a contrapartida de encolhimento de despesas em programas caros aos democratas. Não seria aceito pelo Senado majoritariamente democrata nem pela Casa Branca.

Para que se tenha uma ideia da percepção de riscos de calote pelos mercados, os credit default swaps (CDS) – derivativos que funcionam como seguros e pagam se uma empresa, ou país, renegar seus empréstimos – para títulos do Tesouro de um ano estavam, na semana passada, mais altos que os equivalentes para a Grécia, o México e o Brasil! Para títulos mais longos, como os de 5 anos, a situação não esteve tão anormal. Mas os spreads entre os títulos do Tesouro de 1 e 3 meses atingiram uma alta recorde até 180 pontos básicos.

Permanece a esperança de que a Casa Branca e os republicanos alcancem um acordo a tempo de evitar o que Yellen chamou de “impensável” e “catastrófico”. No centro das negociações estão limites no gasto doméstico, com republicanos demandando cortes profundos em muitos programas nos próximos 10 anos, enquanto democratas aceitam cortes mais modestos por 2 anos.

A Casa Branca recusa a demanda republicana de reversão dos créditos tributários para energia limpa que foram aprovados no ano passado, bem como das medidas de alívio de dívida de estudantes. Também não aceita o estabelecimento de exigências de trabalho em programas contra a pobreza e na rede de proteção social, como também querem os republicanos.

Caso não haja acordo a tempo, o Tesouro ver-se-á obrigado a atrasar pagamentos de salários, fechar temporariamente algumas atividades públicas e, no limite, não cumprir com pagamentos de juros da dívida. Na hipótese de algum rebaixamento adicional na classificação de risco de crédito por alguma agência além da S&P, muitos gerentes de ativos ver-se-iam obrigados a tirar títulos do Tesouro dos Estados Unidos de suas caixinhas de ativos AAA.

Na quinta-feira da semana passada, o Fundo Monetário Internacional chamou atenção para as graves consequências de alguma inadimplência pelo setor público dos Estados Unidos, mesmo que temporária, para o país e a economia global. Ninguém pode dizer quais seriam as reações em cadeia de um choque justamente no “porto seguro” de baixo risco das finanças globais.

Como se não bastassem os choques sofridos ao longo da “tempestade perfeita” dos últimos anos! Com a diferença de que, no caso, não se trata de mercados suspendendo rolagem de dívida por considerá-la insolvente, mas de uma barreira politicamente autoimposta pelo país. Preocupam as ocasionais referências por republicanos – inclusive o ex-presidente Trump – de que um calote e a turbulência em mercados podem ser um preço adequado para obter o corte de gastos públicos.

Há dispositivos legais que correspondem a maneiras de burlar o teto e evitar o que seria a primeira inadimplência do governo federal na história do país: emissão de moeda de platina no valor de US$ 1 trilhão, com seu depósito no Federal Reserve; ou um recurso à 14a emenda da Constituição, onde há menção à possibilidade de emissão de dívida para pagar compromissos sem passar pelo congresso. Tais dispositivos, contudo, contestáveis judicialmente, não foram considerados “boas opções” pela Secretária Yellen. Um acordo com o Congresso acerca do teto de dívida continua sendo a opção mais adequada.

A preocupação com a trajetória da dívida pública dos Estados Unidos esteve contida enquanto durou o período de taxas baixas de juros, particularmente quando inferiores à taxa de crescimento do PIB, como sempre realçou o economista Olivier Blanchard. Agora, faz sentido o que várias vozes como Glen Hubbard e outros têm propugnado, a saber, o estabelecimento de algum arcabouço fiscal para tratar do assunto, em vez de tetos nominais de gasto. Mas essa transição não precisaria acontecer via choques financeiros e uma possibilidade de calote na dívida pública.


Otaviano Canuto foi vice-presidente e diretor executivo no Banco Mundial, diretor executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de assuntos internacionais no Ministério da Fazenda e professor da USP e da Unicamp. Atualmente é membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente da Brookings Institution e professor na Elliott School of International Affairs da George Washington University.

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