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Entre o choque financeiro de março provocado pela covid-19 e o final do mês passado, os mercados de ações e de títulos de dívida corporativa nos Estados Unidos exibiram uma performance extraordinária. Desde então, houve três semanas consecutivas de queda nos três principais índices de ações. O que está acontecendo?

A partir da resposta pelo Federal Reserve (Fed) ao choque de março – redução de juros e criação/ampliação de várias linhas de aquisição de ativos privados e de provisão de crédito  –, a subida nos índices de preços de ações nos mercados dos Estados Unidos os levou em agosto a níveis superiores aos prévios à pandemia, por sua vez já considerados elevados. Enquanto isso ocorria, a recuperação econômica, mesmo depois de passado o fundo do poço no segundo trimestre, permaneceu parcial e incerta, prevalecendo a percepção de que o retorno à tendência de crescimento pré-crise não seria provável. Preços de ações pareceram completamente descolados da economia real. 

É claro que as médias refletidas nos índices se elevaram com uma diferenciação setorial que refletiu a assimetria dos impactos da crise da covid-19: tecnologia e saúde bombando, não sendo tanto o caso com energia, finanças e os ramos de serviços diretamente impactados pela pandemia. Ainda assim, o conjunto exibiu uma performance de revalorização muito além do que se depreenderia olhando a economia real.

Um descolamento da realidade também pareceu estar em pleno vapor no lado do crédito corporativo. Apesar dos receios anteriores à pandemia de que várias empresas tinham atingido níveis excessivos de endividamento nos últimos anos, além de se defrontarem com queda de rendimentos durante a crise, as margens de retorno exigidas por compradores de títulos de dívida encolheram substancialmente. 

Segundo o relatório trimestral do Banco de Compensações Internacionais (BIS, na sigla em inglês) divulgado na semana passada, tais margens no crédito de longo prazo caíram a níveis historicamente baixos, a despeito da evidência de deterioração na qualidade de crédito. A emissão de novos papéis de dívida por todo o espectro de corporações – todos os ratings, mas especialmente de empresas com “grau de investimento” – foi massiva, mesmo que em parte por motivos de precaução, aumentando o grau de endividamento nas estruturas de capital de muitas empresas. 

A grande responsável por tal descolamento foi, é claro, a política do Fed. Níveis mais baixos de juros e baixa volatilidade nos preços deram impulso a aplicações em ativos de risco. No caso de empresas de tecnologia, o entusiasmo se autoalimentou: dealers comprando antecipadamente ações, na expectativa de que os preços continuariam se elevando, acabaram reforçando e corroborando sua alta. De todo modo, como aponta o relatório do BIS, a valorização na maioria dos setores levou a razões entre preços de ações e seus rendimentos a níveis próximos do topo histórico. As oportunidades abertas por condições financeiras ainda mais favoráveis que antes da crise sobrepujaram o efeito desta na atividade das empresas na economia real.

O que aconteceu de notável desde fins de agosto? Houve o encontro (virtual) de banqueiros centrais em Jackson Hole, quando o presidente do Fed, Jerome Powell, anunciou uma mudança no regime de política monetária, algo reforçado na reunião do próprio Fed da semana passada. Em Jackson Hole, Jerome Powell anunciou a mudança no regime de política monetária. Em vez de projetar a inflação para um certo horizonte de tempo, cotejá-la com os 2% e tomar decisões de juros a partir disso, como no regime anterior, a meta seria agora “flexível”, mirada como uma média, o que abriria a possibilidade de se esperar por algum tempo com a inflação acima (abaixo) antes de apertar (afrouxar). Pode-se considerar que se passou a olhar a inflação efetiva (ex post), em lugar de se pautar pela expectativa (ex ante). 

Algo equivalente a isso também se daria no que diz respeito à observação de taxas de desemprego na tomada de decisões. Uma espécie de confissão do fracasso em contar com projeções da “curva de Philips” – relação entre níveis de desemprego e de inflação – nos últimos anos.  

Na sequência, na reunião da semana passada o Fed anunciou um aperto até o fundo no pedal dos juros baixos, pretendendo mantê-lo ali até 2023. A mediana das projeções de inflação pelos membros do comitê – núcleo da inflação de preços ao consumidor – aponta para patamares abaixo de 2% até lá. Por outro lado, não houve antecipação de políticas específicas quanto à compra de ativos no “afrouxamento quantitativo”, o que gerou múltiplas reclamações...

Qualquer um que faça uma pesquisa mínima sobre o que dizem os analistas sobre setembro e o futuro imediato vai encontrar uma polarização acima do normal entre “otimistas” e “pessimistas”. Os otimistas destacam o sinal de juros próximos de zero até pelo menos 2023 e a emissão em massa de ofertas públicas iniciais de ações na semana passada para argumentar que “o dinheiro fácil vai continuar alimentando a febre dos mercados”, particularmente no caso das empresas de tecnologia. As últimas semanas nada mais seriam que uma pausa corretiva, agravada pela falta de compromisso do Fed em  continuar comprando papéis longos do Tesouro americano. 

Pessimistas, por sua vez, destacam a proliferação de empresas “zumbis” que sobrevivem via dívida e terão de encarar as mudanças duradouras associadas à crise da covid-19, bem como outros aspectos do “descolamento” entre preços de ativos e a economia real subjacente.  O relatório do BIS chamou atenção para as pressões sofridas por bancos considerados vulneráveis. Esta semana começou com o receio de que haja necessidade de retomar o confinamento da população, por conta de novos surtos da covid-19, impactando mercados financeiros e a recuperação econômica global. 

O fato é que o descolamento e as flutuações abruptas nos mercados financeiros no limite estão manifestando uma dependência pronunciada – vício – de mercados financeiros em relação a sinais precisos e detalhados emitidos pelo Fed. De seu lado, o Fed, em sua flexibilização do regime monetário e anúncio de juros baixos por longo período, sinalizou seu reconhecimento de que não poderá prover mercados financeiros com tais orientações.

O papel de super-herói cumprido pela política monetária do Fed parece tê-lo levado à exaustão. A política fiscal precisa vir em seu socorro. 

Otaviano Canuto é membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente do Brookings Institute e diretor do Center for Macroeconomics and Development em Washington. Foi vice-presidente e diretor executivo no Banco Mundial, diretor-executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de assuntos internacionais no Ministério da Fazenda e professor da USP e da Unicamp.

COLUNA PUBLICADA NA FOLHA DE SÃO PAULO

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Dependência e Descolamento nos Mercados Financeiros dos Estados Unidos

Entre o choque financeiro de março provocado pela covid-19 e o final do mês passado, os mercados de ações e de títulos de dívida corporativa nos Estados Unidos exibiram uma performance extraordinária. Desde então, houve três semanas consecutivas de queda nos três principais índices de ações. O que está acontecendo?

A partir da resposta pelo Federal Reserve (Fed) ao choque de março – redução de juros e criação/ampliação de várias linhas de aquisição de ativos privados e de provisão de crédito  –, a subida nos índices de preços de ações nos mercados dos Estados Unidos os levou em agosto a níveis superiores aos prévios à pandemia, por sua vez já considerados elevados. Enquanto isso ocorria, a recuperação econômica, mesmo depois de passado o fundo do poço no segundo trimestre, permaneceu parcial e incerta, prevalecendo a percepção de que o retorno à tendência de crescimento pré-crise não seria provável. Preços de ações pareceram completamente descolados da economia real. 

É claro que as médias refletidas nos índices se elevaram com uma diferenciação setorial que refletiu a assimetria dos impactos da crise da covid-19: tecnologia e saúde bombando, não sendo tanto o caso com energia, finanças e os ramos de serviços diretamente impactados pela pandemia. Ainda assim, o conjunto exibiu uma performance de revalorização muito além do que se depreenderia olhando a economia real.

Um descolamento da realidade também pareceu estar em pleno vapor no lado do crédito corporativo. Apesar dos receios anteriores à pandemia de que várias empresas tinham atingido níveis excessivos de endividamento nos últimos anos, além de se defrontarem com queda de rendimentos durante a crise, as margens de retorno exigidas por compradores de títulos de dívida encolheram substancialmente. 

Segundo o relatório trimestral do Banco de Compensações Internacionais (BIS, na sigla em inglês) divulgado na semana passada, tais margens no crédito de longo prazo caíram a níveis historicamente baixos, a despeito da evidência de deterioração na qualidade de crédito. A emissão de novos papéis de dívida por todo o espectro de corporações – todos os ratings, mas especialmente de empresas com “grau de investimento” – foi massiva, mesmo que em parte por motivos de precaução, aumentando o grau de endividamento nas estruturas de capital de muitas empresas. 

A grande responsável por tal descolamento foi, é claro, a política do Fed. Níveis mais baixos de juros e baixa volatilidade nos preços deram impulso a aplicações em ativos de risco. No caso de empresas de tecnologia, o entusiasmo se autoalimentou: dealers comprando antecipadamente ações, na expectativa de que os preços continuariam se elevando, acabaram reforçando e corroborando sua alta. De todo modo, como aponta o relatório do BIS, a valorização na maioria dos setores levou a razões entre preços de ações e seus rendimentos a níveis próximos do topo histórico. As oportunidades abertas por condições financeiras ainda mais favoráveis que antes da crise sobrepujaram o efeito desta na atividade das empresas na economia real.

O que aconteceu de notável desde fins de agosto? Houve o encontro (virtual) de banqueiros centrais em Jackson Hole, quando o presidente do Fed, Jerome Powell, anunciou uma mudança no regime de política monetária, algo reforçado na reunião do próprio Fed da semana passada. Em Jackson Hole, Jerome Powell anunciou a mudança no regime de política monetária. Em vez de projetar a inflação para um certo horizonte de tempo, cotejá-la com os 2% e tomar decisões de juros a partir disso, como no regime anterior, a meta seria agora “flexível”, mirada como uma média, o que abriria a possibilidade de se esperar por algum tempo com a inflação acima (abaixo) antes de apertar (afrouxar). Pode-se considerar que se passou a olhar a inflação efetiva (ex post), em lugar de se pautar pela expectativa (ex ante). 

Algo equivalente a isso também se daria no que diz respeito à observação de taxas de desemprego na tomada de decisões. Uma espécie de confissão do fracasso em contar com projeções da “curva de Philips” – relação entre níveis de desemprego e de inflação – nos últimos anos.  

Na sequência, na reunião da semana passada o Fed anunciou um aperto até o fundo no pedal dos juros baixos, pretendendo mantê-lo ali até 2023. A mediana das projeções de inflação pelos membros do comitê – núcleo da inflação de preços ao consumidor – aponta para patamares abaixo de 2% até lá. Por outro lado, não houve antecipação de políticas específicas quanto à compra de ativos no “afrouxamento quantitativo”, o que gerou múltiplas reclamações...

Qualquer um que faça uma pesquisa mínima sobre o que dizem os analistas sobre setembro e o futuro imediato vai encontrar uma polarização acima do normal entre “otimistas” e “pessimistas”. Os otimistas destacam o sinal de juros próximos de zero até pelo menos 2023 e a emissão em massa de ofertas públicas iniciais de ações na semana passada para argumentar que “o dinheiro fácil vai continuar alimentando a febre dos mercados”, particularmente no caso das empresas de tecnologia. As últimas semanas nada mais seriam que uma pausa corretiva, agravada pela falta de compromisso do Fed em  continuar comprando papéis longos do Tesouro americano. 

Pessimistas, por sua vez, destacam a proliferação de empresas “zumbis” que sobrevivem via dívida e terão de encarar as mudanças duradouras associadas à crise da covid-19, bem como outros aspectos do “descolamento” entre preços de ativos e a economia real subjacente.  O relatório do BIS chamou atenção para as pressões sofridas por bancos considerados vulneráveis. Esta semana começou com o receio de que haja necessidade de retomar o confinamento da população, por conta de novos surtos da covid-19, impactando mercados financeiros e a recuperação econômica global. 

O fato é que o descolamento e as flutuações abruptas nos mercados financeiros no limite estão manifestando uma dependência pronunciada – vício – de mercados financeiros em relação a sinais precisos e detalhados emitidos pelo Fed. De seu lado, o Fed, em sua flexibilização do regime monetário e anúncio de juros baixos por longo período, sinalizou seu reconhecimento de que não poderá prover mercados financeiros com tais orientações.

O papel de super-herói cumprido pela política monetária do Fed parece tê-lo levado à exaustão. A política fiscal precisa vir em seu socorro. 

Otaviano Canuto é membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente do Brookings Institute e diretor do Center for Macroeconomics and Development em Washington. Foi vice-presidente e diretor executivo no Banco Mundial, diretor-executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de assuntos internacionais no Ministério da Fazenda e professor da USP e da Unicamp.


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