Por Otaviano Canuto em 28 de novembro de 2019 Tempo médio de leitura: 12 minutos e 15 segundos
Na semana passada, Paulo Guedes disse que o processo de abertura
comercial brasileiro será gradual e não ocorrerá antes da simplificação de
impostos e da redução de juros. "Estamos tentando promover um choque de
energia barata; o gás natural deve reduzir substancialmente o custo da indústria
brasileira. Estamos trabalhando em todas as frentes, como redução de juros e de
impostos, vamos atacar através da cabotagem os custos de logística", disse o ministro da Economia,mencionando também a necessidade de desoneração da folha e a
aceleração do processo de aprovação de licenças ambientais.
Que seja gradual, porém firme e substancial. A economia brasileira paga um alto preço por ser tão extraordinariamente fechada ao comércio exterior. O país poderia ter maior produtividade e competitividade, mesmo que abdicando de fazer internamente o que passaria a importar, caso pudesse ter acesso ao que há de melhor e mais avançado em equipamentos e tecnologia.
O Brasil é um país comercialmente fechado
Considere, por exemplo, as tarifas sobre importações. Ponderando-se pelo peso dos itens na pauta de importações, a média era de 8,3% em 2015, a mais alta entre economias avançadas e em desenvolvimento comparáveis. Tal proteção tarifária se faz acompanhar do uso de barreiras não tarifárias e regras de conteúdo local também mais intensos que naqueles países. O número e a profundidade dos acordos de livre-comércio dos quais o Brasil é signatário são restritos.
Não por acaso, o Brasil mantém um grau de densidade em suas cadeias de produção industrial doméstica acima do que se deveria esperar em seu nível de renda e desenvolvimento. Pode-se pensar que isso é intrinsecamente benigno, mas observe que, ao abdicar de insumos, equipamentos e tecnologias mais avançados e disponíveis externamente, essas cadeias integradas operam com níveis de produtividade e qualidade menores do que poderiam dispor.
Cadeias produtivas mais enxutas e integradas para fora teriam como contrapartida maior capacidade de exportar e de prover domesticamente produtos melhores e mais baratos, podendo sua expansão compensar a menor densidade doméstica.
Restrições a importações funcionam como tributos sobre exportações, impedindo a obtenção de economias de escala no mercado exterior. A Embraer, a Petrobras antes de ser submetida a pesados compromissos de conteúdo local e a agricultura são exemplos de sucesso que constituem exceções que confirmam a regra explicitada acima.
O temor de perda de segmentos de produção local com alto conteúdo tecnológico deve ser contraposto ao fato de que sua sobrevivência doméstica por conta dos esteroides da proteção não significa domínio tecnológico local, ao mesmo tempo em que impõe um ônus para os demais. Um barateamento da cesta de bens pode muito bem significar menores custos salariais e intermediários para atividades nas quais o país pode desenvolver capacidades locais de geração de valor adicionado.
A experiência histórica recente mostra que tanto os países que não estão na fronteira tecnológica quanto os que lá estão têm melhores resultados em termos de inovação tecnológica local quando podem se beneficiar de acesso a fontes externas de conhecimento, inclusive por meio da importação de bens e serviços.
Para além dos canais diretos de importação e exportação, o fechamento comercial contribui para a baixa intensidade da concorrência em muitos mercados domésticos, o que por sua vez ajuda a entender por que a sobrevivência de processos produtivos e empresas menos eficientes é, no Brasil, proporcionalmente maior do que, de novo, nas economias comparáveis. A produtividade média acaba menor que aquela que prevaleceria caso fatias de mercado e recursos pudessem ser absorvidos pelas empresas mais eficientes. O fechamento comercial brasileiro provoca um efeito deletério ao reduzir a força da concorrência entre empresas e permitir, assim, a permanência de capital e recursos humanos em empresas ineficientes, ao passo que a produtividade média seria maior caso fossem realocados para empresas melhores.
Ganhos com a abertura dependerão de reformas complementares
A falta de concorrência e o desempenho fraco de produtividade têm, evidentemente, razões domésticas que vão além do fechamento comercial externo: baixo investimento em infraestrutura; ambiente de negócios; distorções no financiamento de longo prazo; qualidade dos gastos públicos em educação; etc. Daí a importância de fatores coincidentes ou prévios como os mencionados pelo ministro Guedes. Mudanças nesses pontos seriam pré-condição para que os benefícios de maior integração comercial pudessem ser auferidos.
Em lugar de políticas de apoio a empresas para compensar desvantagens competitivas daí decorrentes e outros objetivos – cujo custo fiscal foi estimado em 4,5% do PIB e 9 vezes os gastos com o Bolsa Família em 2015, de acordo com um relatório do Banco Mundial – poder-se-ia adotar políticas voltadas à produtividade e à suavização de processos de realocação de trabalhadores.
Em complemento a uma agenda de superação de tais impedimentos domésticos à maior seletividade concorrencial e ao aumento de produtividade, muito se pode fazer na política comercial mesmo com o cenário global pouco recíproco a gestos unilaterais. Com o anúncio antecipado e o gradualismo, a estrutura tarifária brasileira em vigor pode ser simplificada, reduzindo-se o número de níveis de taxas e os custos de importação de bens intermediários e de capital, o que resultaria em picos mais baixos de taxas efetivas de proteção.
Requisitos de conteúdo local que ainda estejam em vigor podem ser revisitados. A carga tributária incidente sobre exportações – inclusive créditos tributários devidos – pode ser mitigada. As restrições e os elevados tributos impostos sobre a importação de serviços financeiros e profissionais que servem como insumos-chave para a produção e exportação podem ser aliviados.
Impactos da abertura podem ser minimizados por políticas complementares
Não se pode, por outro lado, negligenciar as fricções e choques que acompanhariam qualquer processo de abertura. O fortalecimento de atividades e empregos beneficiários se dá enquanto se fragilizam os diretamente impactados.
Os ganhos totais não serão distribuídos uniformemente entre regiões e estratos de renda, tornando premente a adoção de políticas complementares de facilitação da mobilidade do trabalho, de retreinamento e geração de novos empregos. Contudo, com compensação e minimização do ônus de ajuste, ganhos maiores que perdas poderiam compensar o choque ocasionado pela abertura, até porque a alternativa seria manter o status quo.
Um trabalho desenvolvido pela Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE-PR) no ano passado, “Abertura comercial para o desenvolvimento econômico”, estima que o acesso a máquinas e insumos a preços mais baixos, combinado à pressão competitiva permitida pela abertura, resultaria em uma queda no nível geral de preços de algo em torno de 5% em termos reais. Como seria de se esperar, preços cairiam especialmente em setores que são hoje os mais protegidos: automóveis, maquinários, couro, têxteis e vestuários teriam preços entre 6% e 16% mais baixos.
Cabe notar que as estimativas não chegam a incorporar ganhos potenciais de produtividade provenientes do aprendizado no manejo de tecnologias mais avançadas, que hoje acabam coibidas por barreiras tarifárias e não-tarifárias à importação.
Ao longo do período seguinte à liberalização, 75% dos setores da economia brasileira teriam aumento de emprego, enquanto três setores – couro, têxteis e vestuário – sofreriam queda de emprego acima de 0,5% em 20 anos. Embora obviamente as importações crescessem, a queda de custos ensejaria maior capacidade de exportar até naqueles setores mais diretamente afetados pela abertura – inclusive vestuários e têxteis.
Por outro lado, a pesquisa constata potenciais impactos regionais diferenciados da abertura, devido à concentração geográfica dos setores analisados. As microrregiões mais afetadas seriam as que contam com produção mais dependente de tarifas altas.
No caso das cidades maiores, a simultaneidade de destruição e criação de empregos em setores distintos daria mais margem para migração ocupacional de trabalhadores. O estudo estima que a realocação de mão de obra no ajuste à abertura atingisse cerca de 3 milhões de trabalhadores do país.
O documento da SAE realça, nesse contexto, a relevância de políticas de mercado de trabalho que facilitem a transição, particularmente políticas públicas que recuperem ou aumentem a empregabilidade de trabalhadores inicialmente impactados pelo choque comercial. Observa como isso poderia ocorrer mediante modificações e melhoras em políticas já existentes, algo possível de ser feito no nível infralegal e, portanto, objeto de ação unilateral do Poder Executivo.
Levando-se em conta informações sobre quais regiões seriam mais afetadas, quais setores tenderiam a se expandir ou encolher, bem como quais habilidades estariam sendo demandadas, seria possível sintonizar a oferta de requalificação à demanda e, assim, facilitar a reinserção produtiva de trabalhadores.
Também cabe reconhecer a possibilidade de minimizar o choque adotando-se o gradualismo anunciado pelo ministro, bem como a previsibilidade na abertura. Por outro lado, prolongar o status quo significaria a extensão dos custos lá embutidos para a economia do país.
Otaviano Canuto é membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente do Brookings Institute e diretor do Center for Macroeconomics and Development em Washington. Foi vice-presidente e diretor executivo no Banco Mundial, diretor-executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de assuntos internacionais no Ministério da Fazenda e professor da USP e da Unicamp.
COLUNA PUBLICADA NA FOLHA DE SÃO PAULO
Que seja gradual, porém firme e substancial. A economia brasileira paga um alto preço por ser tão extraordinariamente fechada ao comércio exterior. O país poderia ter maior produtividade e competitividade, mesmo que abdicando de fazer internamente o que passaria a importar, caso pudesse ter acesso ao que há de melhor e mais avançado em equipamentos e tecnologia.
O Brasil é um país comercialmente fechado
Considere, por exemplo, as tarifas sobre importações. Ponderando-se pelo peso dos itens na pauta de importações, a média era de 8,3% em 2015, a mais alta entre economias avançadas e em desenvolvimento comparáveis. Tal proteção tarifária se faz acompanhar do uso de barreiras não tarifárias e regras de conteúdo local também mais intensos que naqueles países. O número e a profundidade dos acordos de livre-comércio dos quais o Brasil é signatário são restritos.
Não por acaso, o Brasil mantém um grau de densidade em suas cadeias de produção industrial doméstica acima do que se deveria esperar em seu nível de renda e desenvolvimento. Pode-se pensar que isso é intrinsecamente benigno, mas observe que, ao abdicar de insumos, equipamentos e tecnologias mais avançados e disponíveis externamente, essas cadeias integradas operam com níveis de produtividade e qualidade menores do que poderiam dispor.
Cadeias produtivas mais enxutas e integradas para fora teriam como contrapartida maior capacidade de exportar e de prover domesticamente produtos melhores e mais baratos, podendo sua expansão compensar a menor densidade doméstica.
Restrições a importações funcionam como tributos sobre exportações, impedindo a obtenção de economias de escala no mercado exterior. A Embraer, a Petrobras antes de ser submetida a pesados compromissos de conteúdo local e a agricultura são exemplos de sucesso que constituem exceções que confirmam a regra explicitada acima.
O temor de perda de segmentos de produção local com alto conteúdo tecnológico deve ser contraposto ao fato de que sua sobrevivência doméstica por conta dos esteroides da proteção não significa domínio tecnológico local, ao mesmo tempo em que impõe um ônus para os demais. Um barateamento da cesta de bens pode muito bem significar menores custos salariais e intermediários para atividades nas quais o país pode desenvolver capacidades locais de geração de valor adicionado.
A experiência histórica recente mostra que tanto os países que não estão na fronteira tecnológica quanto os que lá estão têm melhores resultados em termos de inovação tecnológica local quando podem se beneficiar de acesso a fontes externas de conhecimento, inclusive por meio da importação de bens e serviços.
Para além dos canais diretos de importação e exportação, o fechamento comercial contribui para a baixa intensidade da concorrência em muitos mercados domésticos, o que por sua vez ajuda a entender por que a sobrevivência de processos produtivos e empresas menos eficientes é, no Brasil, proporcionalmente maior do que, de novo, nas economias comparáveis. A produtividade média acaba menor que aquela que prevaleceria caso fatias de mercado e recursos pudessem ser absorvidos pelas empresas mais eficientes. O fechamento comercial brasileiro provoca um efeito deletério ao reduzir a força da concorrência entre empresas e permitir, assim, a permanência de capital e recursos humanos em empresas ineficientes, ao passo que a produtividade média seria maior caso fossem realocados para empresas melhores.
Ganhos com a abertura dependerão de reformas complementares
A falta de concorrência e o desempenho fraco de produtividade têm, evidentemente, razões domésticas que vão além do fechamento comercial externo: baixo investimento em infraestrutura; ambiente de negócios; distorções no financiamento de longo prazo; qualidade dos gastos públicos em educação; etc. Daí a importância de fatores coincidentes ou prévios como os mencionados pelo ministro Guedes. Mudanças nesses pontos seriam pré-condição para que os benefícios de maior integração comercial pudessem ser auferidos.
Em lugar de políticas de apoio a empresas para compensar desvantagens competitivas daí decorrentes e outros objetivos – cujo custo fiscal foi estimado em 4,5% do PIB e 9 vezes os gastos com o Bolsa Família em 2015, de acordo com um relatório do Banco Mundial – poder-se-ia adotar políticas voltadas à produtividade e à suavização de processos de realocação de trabalhadores.
Em complemento a uma agenda de superação de tais impedimentos domésticos à maior seletividade concorrencial e ao aumento de produtividade, muito se pode fazer na política comercial mesmo com o cenário global pouco recíproco a gestos unilaterais. Com o anúncio antecipado e o gradualismo, a estrutura tarifária brasileira em vigor pode ser simplificada, reduzindo-se o número de níveis de taxas e os custos de importação de bens intermediários e de capital, o que resultaria em picos mais baixos de taxas efetivas de proteção.
Requisitos de conteúdo local que ainda estejam em vigor podem ser revisitados. A carga tributária incidente sobre exportações – inclusive créditos tributários devidos – pode ser mitigada. As restrições e os elevados tributos impostos sobre a importação de serviços financeiros e profissionais que servem como insumos-chave para a produção e exportação podem ser aliviados.
Impactos da abertura podem ser minimizados por políticas complementares
Não se pode, por outro lado, negligenciar as fricções e choques que acompanhariam qualquer processo de abertura. O fortalecimento de atividades e empregos beneficiários se dá enquanto se fragilizam os diretamente impactados.
Os ganhos totais não serão distribuídos uniformemente entre regiões e estratos de renda, tornando premente a adoção de políticas complementares de facilitação da mobilidade do trabalho, de retreinamento e geração de novos empregos. Contudo, com compensação e minimização do ônus de ajuste, ganhos maiores que perdas poderiam compensar o choque ocasionado pela abertura, até porque a alternativa seria manter o status quo.
Um trabalho desenvolvido pela Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE-PR) no ano passado, “Abertura comercial para o desenvolvimento econômico”, estima que o acesso a máquinas e insumos a preços mais baixos, combinado à pressão competitiva permitida pela abertura, resultaria em uma queda no nível geral de preços de algo em torno de 5% em termos reais. Como seria de se esperar, preços cairiam especialmente em setores que são hoje os mais protegidos: automóveis, maquinários, couro, têxteis e vestuários teriam preços entre 6% e 16% mais baixos.
Cabe notar que as estimativas não chegam a incorporar ganhos potenciais de produtividade provenientes do aprendizado no manejo de tecnologias mais avançadas, que hoje acabam coibidas por barreiras tarifárias e não-tarifárias à importação.
Ao longo do período seguinte à liberalização, 75% dos setores da economia brasileira teriam aumento de emprego, enquanto três setores – couro, têxteis e vestuário – sofreriam queda de emprego acima de 0,5% em 20 anos. Embora obviamente as importações crescessem, a queda de custos ensejaria maior capacidade de exportar até naqueles setores mais diretamente afetados pela abertura – inclusive vestuários e têxteis.
Por outro lado, a pesquisa constata potenciais impactos regionais diferenciados da abertura, devido à concentração geográfica dos setores analisados. As microrregiões mais afetadas seriam as que contam com produção mais dependente de tarifas altas.
No caso das cidades maiores, a simultaneidade de destruição e criação de empregos em setores distintos daria mais margem para migração ocupacional de trabalhadores. O estudo estima que a realocação de mão de obra no ajuste à abertura atingisse cerca de 3 milhões de trabalhadores do país.
O documento da SAE realça, nesse contexto, a relevância de políticas de mercado de trabalho que facilitem a transição, particularmente políticas públicas que recuperem ou aumentem a empregabilidade de trabalhadores inicialmente impactados pelo choque comercial. Observa como isso poderia ocorrer mediante modificações e melhoras em políticas já existentes, algo possível de ser feito no nível infralegal e, portanto, objeto de ação unilateral do Poder Executivo.
Levando-se em conta informações sobre quais regiões seriam mais afetadas, quais setores tenderiam a se expandir ou encolher, bem como quais habilidades estariam sendo demandadas, seria possível sintonizar a oferta de requalificação à demanda e, assim, facilitar a reinserção produtiva de trabalhadores.
Também cabe reconhecer a possibilidade de minimizar o choque adotando-se o gradualismo anunciado pelo ministro, bem como a previsibilidade na abertura. Por outro lado, prolongar o status quo significaria a extensão dos custos lá embutidos para a economia do país.
Otaviano Canuto é membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente do Brookings Institute e diretor do Center for Macroeconomics and Development em Washington. Foi vice-presidente e diretor executivo no Banco Mundial, diretor-executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de assuntos internacionais no Ministério da Fazenda e professor da USP e da Unicamp.
COLUNA PUBLICADA NA FOLHA DE SÃO PAULO
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