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Por que mexer na regra de ouro?

O tema é quente, e envolve considerações tanto econômicas como políticas. Ficamos com as primeiras e deixamos as segundas para os politólogos.

O espírito por trás da regra de ouro, criada lá nos idos de 1988, é nobre: conter a trajetória do endividamento do setor público. Informalmente, e em parte erroneamente, a regra é muitas vezes apresentada como instrumento de controle que visa impedir o endividamento do governo para pagar despesas correntes.

O Brasil, claríssimo está, necessita mudar a sua precária institucionalidade fiscal. Precisa, como se diz no popular, "caber dentro do próprio bolso". Mas a discussão aqui é sobre o formato da regra de ouro, que não nos parece dos melhores.

Suponhamos que um governo "x" qualquer resolva aumentar gastos permanentes e cortar impostos, gerando déficits primários. Déficits mais elevados hoje geram dívida maior amanhã, pois é via emissão de dívida que o governo cobre a diferença entre o que gasta e o que arrecada.

E uma dívida maior contribui para maiores pagamentos de dívida depois de amanhã: quanto maior a dívida, maior a necessidade de emitir nova dívida para repagar a dívida velha. A opção é não pagar parte da dívida velha. Ou pagar com moeda, gerando inflação.

Numa democracia, o governo "x" tem duração finita, mas a dívida que ele contrai e os gastos que ele aumenta ficam e podem vir a gerar uma necessidade de emissão de dívida nova que ultrapasse o limite imposto pela regra de ouro na época do, digamos, governo "y". Essa defasagem –os benefícios vêm agora, mas os custos ficam para depois– dá origem a um grave problema de incentivo: o político se preocupa pouco com as consequências adversas da decisão de maiores gastos hoje se essas tardam a chegar.

Veja o leitor o que isso significa na prática: que o propósito inicial da regra sai completamente derrotado, pois ela não é eficaz para amarrar as mãos de quem, num dado momento do tempo, ainda tem algum espaço fiscal.

Em outras palavras, a regra de ouro não pune quem comete os atos que dão origem à deterioração fiscal que, em algum momento do futuro, tornará o gerenciamento das contas públicas insustentável. Nenhum congressista ou integrante do poder executivo deixa de pressionar por maiores gastos porque daqui a cinco anos isso pode gerar um pepino legal para o governo do futuro.

Ou seja: o desenho da regra de ouro é mal ajambrado, apesar de concordarmos que ela, ao menos, forçou a discussão sobre a nossa calamitosa situação fiscal.

Mais apropriada –ainda que também imperfeita– é a PEC do teto, aprovada no ano de 2017. Ela impõe um limite ao crescimento dos gastos primários, não da dívida primária. Faz mais sentido: o governo tem maior controle sobre essa variável do que sobre a necessidade de emissão de dívida.

Se a economia entra em recessão e a arrecadação cai, por exemplo, o déficit aumenta e a necessidade de emissão de nova dívida cresce –mas não por "irresponsabilidade fiscal". Outro exemplo: se os juros internacionais se elevam e, na esteira disso, o doméstico também sobe, o serviço da dívida se elevará, demandando maior emissão de nova dívida (refinanciamento).

Nesse caso, tributar mais seria possível; porém, se a economia não estiver andando bem, essa alternativa é desnecessariamente penosa. Com o juro mais elevado, também não faz sentido taxar de irresponsável a política fiscal e punir o agente público que emite mais dívida, mas é assim que a regra de ouro "interpreta" a situação –com consequente punição ao gestor.

Regras com punições são bem-vindas, não nos entenda mal o prezado leitor. Mas, como a chamada Teoria dos Contratos ensina, duas condições precisam valer para a punição gerar o desejado alinhamento de incentivos:

1 - A punição precisa mirar no ato gerador sobre o qual o formulador da política tem maior controle, em vez de ter como parâmetro as variáveis indiretamente relacionadas ao ato, e que dependem de outros fatores de natureza mais aleatória.

2 - A punição não pode ser adiada, mas imposta por ocasião do ato gerador. Essas duas condições deixam claro que a variável a ditar o cumprimento, ou não, da regra deveria ser o gasto primário.

Para a regra de ouro ser cumprida conforme está desenhada hoje, o governo precisaria arrumar uns R$ 200 bilhões a mais em arrecadação/corte de despesas em período curtíssimo de tempo. A missão é política e juridicamente infactível pelo lado dos gastos, e seria desastroso para economia se esse dinheiro viesse através de maior carga tributária.

Como instrumento de controle fiscal, nossa análise é que a PEC do teto tem uma lógica mais bem fundamentada que a regra de ouro, porque foca no lugar certo –nas despesas– e dispara automaticamente gatilhos de contenção: se o teto de gastos foi rompido, fica vedada, por exemplo, qualquer possibilidade de aumento de salário de funcionário público e pensionista.

Por outro lado, num momento recessivo de queda da arrecadação, ela não preconiza um desnecessário aumento de impostos –contrariamente à regra de ouro.

Por motivos práticos e teóricos, é preciso pensar num desenho mais eficiente para a regra de ouro, de intenções nobres.

 

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Por que mexer na regra de ouro?

Por que mexer na regra de ouro? O tema é quente, e envolve considerações tanto econômicas como políticas. Ficamos com as primeiras e deixamos as segundas para os politólogos. O espírito por trás da regra de ouro, criada lá nos idos de 1988, é nobre: conter a trajetória do endividamento do setor público. Informalmente, e em parte erroneamente, a regra é muitas vezes apresentada como instrumento de controle que visa impedir o endividamento do governo para pagar despesas correntes. O Brasil, claríssimo está, necessita mudar a sua precária institucionalidade fiscal. Precisa, como se diz no popular, "caber dentro do próprio bolso". Mas a discussão aqui é sobre o formato da regra de ouro, que não nos parece dos melhores. Suponhamos que um governo "x" qualquer resolva aumentar gastos permanentes e cortar impostos, gerando déficits primários. Déficits mais elevados hoje geram dívida maior amanhã, pois é via emissão de dívida que o governo cobre a diferença entre o que gasta e o que arrecada. E uma dívida maior contribui para maiores pagamentos de dívida depois de amanhã: quanto maior a dívida, maior a necessidade de emitir nova dívida para repagar a dívida velha. A opção é não pagar parte da dívida velha. Ou pagar com moeda, gerando inflação. Numa democracia, o governo "x" tem duração finita, mas a dívida que ele contrai e os gastos que ele aumenta ficam e podem vir a gerar uma necessidade de emissão de dívida nova que ultrapasse o limite imposto pela regra de ouro na época do, digamos, governo "y". Essa defasagem –os benefícios vêm agora, mas os custos ficam para depois– dá origem a um grave problema de incentivo: o político se preocupa pouco com as consequências adversas da decisão de maiores gastos hoje se essas tardam a chegar. Veja o leitor o que isso significa na prática: que o propósito inicial da regra sai completamente derrotado, pois ela não é eficaz para amarrar as mãos de quem, num dado momento do tempo, ainda tem algum espaço fiscal. Em outras palavras, a regra de ouro não pune quem comete os atos que dão origem à deterioração fiscal que, em algum momento do futuro, tornará o gerenciamento das contas públicas insustentável. Nenhum congressista ou integrante do poder executivo deixa de pressionar por maiores gastos porque daqui a cinco anos isso pode gerar um pepino legal para o governo do futuro. Ou seja: o desenho da regra de ouro é mal ajambrado, apesar de concordarmos que ela, ao menos, forçou a discussão sobre a nossa calamitosa situação fiscal. Mais apropriada –ainda que também imperfeita– é a PEC do teto, aprovada no ano de 2017. Ela impõe um limite ao crescimento dos gastos primários, não da dívida primária. Faz mais sentido: o governo tem maior controle sobre essa variável do que sobre a necessidade de emissão de dívida. Se a economia entra em recessão e a arrecadação cai, por exemplo, o déficit aumenta e a necessidade de emissão de nova dívida cresce –mas não por "irresponsabilidade fiscal". Outro exemplo: se os juros internacionais se elevam e, na esteira disso, o doméstico também sobe, o serviço da dívida se elevará, demandando maior emissão de nova dívida (refinanciamento). Nesse caso, tributar mais seria possível; porém, se a economia não estiver andando bem, essa alternativa é desnecessariamente penosa. Com o juro mais elevado, também não faz sentido taxar de irresponsável a política fiscal e punir o agente público que emite mais dívida, mas é assim que a regra de ouro "interpreta" a situação –com consequente punição ao gestor. Regras com punições são bem-vindas, não nos entenda mal o prezado leitor. Mas, como a chamada Teoria dos Contratos ensina, duas condições precisam valer para a punição gerar o desejado alinhamento de incentivos: 1 - A punição precisa mirar no ato gerador sobre o qual o formulador da política tem maior controle, em vez de ter como parâmetro as variáveis indiretamente relacionadas ao ato, e que dependem de outros fatores de natureza mais aleatória. 2 - A punição não pode ser adiada, mas imposta por ocasião do ato gerador. Essas duas condições deixam claro que a variável a ditar o cumprimento, ou não, da regra deveria ser o gasto primário. Para a regra de ouro ser cumprida conforme está desenhada hoje, o governo precisaria arrumar uns R$ 200 bilhões a mais em arrecadação/corte de despesas em período curtíssimo de tempo. A missão é política e juridicamente infactível pelo lado dos gastos, e seria desastroso para economia se esse dinheiro viesse através de maior carga tributária. Como instrumento de controle fiscal, nossa análise é que a PEC do teto tem uma lógica mais bem fundamentada que a regra de ouro, porque foca no lugar certo –nas despesas– e dispara automaticamente gatilhos de contenção: se o teto de gastos foi rompido, fica vedada, por exemplo, qualquer possibilidade de aumento de salário de funcionário público e pensionista. Por outro lado, num momento recessivo de queda da arrecadação, ela não preconiza um desnecessário aumento de impostos –contrariamente à regra de ouro. Por motivos práticos e teóricos, é preciso pensar num desenho mais eficiente para a regra de ouro, de intenções nobres.   Para ficar por dentro do que rola no Por Quê?, clique aqui e assine a nossa Newsletter.
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