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							Em 2017, quando era um dos diretores-executivos do Banco Mundial, visitei em missão de trabalho a Faixa de Gaza, na Palestina. Um projeto de saneamento financiado pelo Banco para uma área residencial sujeita a enchentes de fezes quando chovia muito estava parado por proibição de entrada de tubos hidráulicos. Quando conversamos com a autoridade militar israelense responsável pelo bloqueio dos tubos, ele nos disse que o problema estava em sua possível dupla utilização, civil ou militar.

Lembro disso ao ver as referências à segurança nacional em argumentos contra o comércio livre de bens de dupla utilização. Como abordamos aqui, a segurança nacional é o argumento mais poderoso contra a globalização irrestrita e impulsionada pelo mercado. É também o mais difícil de avaliar, pois não pode ser analisado diretamente por pesquisadores, analistas de mercado ou jornalistas – é preciso tomar o que dizem as fontes de inteligência de governos.

O argumento encontrou apoio bipartidário nos Estados Unidos em relação à China. Um grave problema sempre pode vir caso uma interpretação ampla de “uso duplo” resulte na restrição de muitos bens e serviços – de até roupas ou de medicamentos usados ​​pelos militares. Como o conceito tem o potencial de levar a restrições amplas e abrangentes em vários setores, há o risco de que estimule guerras econômicas sob a forma de retaliações.

A principal categoria visada até o momento é o setor de semicondutores. Os semicondutores são um componente integral de vários produtos de consumo, como carros e smartphones, mas também podem ser usados em bens de uso duplo, como aeronaves civis e militares. Além disso, são usados ​​em supercomputação e inteligência artificial, áreas com implicações potenciais em termos de segurança nacional.

A disputa no caso diz respeito aos segmentos mais avançados na indústria de semicondutores. Há que se distinguir entre semicondutores mais avançados com 3-14 nanômetros de tamanho e os chips mais simples e baratos acima de 14 nanômetros.

Taiwan e Coreia do Sul têm um domínio da tecnologia de fabricação dos chips de ponta e ocupam perto de 50% do mercado mundial de semicondutores. Os Estados Unidos respondem por 12% do mercado global, mas suas empresas locais não produzem chips avançados em grande escala. Por outro lado, muitos estágios do processo de produção de semicondutores dependem de tecnologias originárias nos EUA, inclusive os equipamentos necessários para a produção dos chips mais avançados.

No passado recente, a China ocupou larga parcela dos mercados de semicondutores baratos, com nanômetros mais altos. Pode-se ver no caso uma tentativa de repetição da trajetória na qual o país se utilizou bem da globalização para ascender nas escalas de valor adicionado – e consequentemente na escada da renda per capita. As dificuldades criadas pelos Estados Unidos no caso dos semicondutores consistem justamente em cortar o acesso a degraus da escada que estão no exterior. A China terá de construí-los ela própria.

Em outubro de 2022, os Estados Unidos anunciaram amplos controles de exportação na indústria de semicondutores mirando na China. Os Estados Unidos não exportam muitos semicondutores diretamente para a China. No entanto, os controles de exportação visaram países terceiros, ou seja, não os próprios Estados Unidos ou a China, e sim países fabricantes de chips que usam software e/ou máquinas dos EUA em suas instalações de fabricação.

De acordo com as restrições, qualquer semicondutor fabricado com tecnologia americana para uso em supercomputação ou inteligência artificial apenas pode ser vendido para a China com uma licença de exportação emitida pelos Estados Unidos, licença essa difícil de obter. Dado que quase todos os semicondutores são produzidos usando tecnologia dos Estados Unidos, esta regra abrange efetivamente toda a indústria global.

Os países terceiros estão submetidos à seguinte escolha: buscar as licenças de exportação exigidas pelos Estados Unidos ou deixar de usar tecnologia e equipamentos destes. Vem daí um uso crescente da frase “interdependência armada” para caracterizar como os Estados Unidos usaram a interdependência inerente ao comércio e às cadeias de suprimentos globais para forçar seus parceiros comerciais a se alinharem com sua guerra econômica contra a China. Além disso, seus cidadãos estão proibidos de trabalhar com produtores de chips chineses, a não ser com aprovação específica. Com estas medidas, os EUA procuram impedir que a China avance tecnologicamente usando o que já existe na fronteira no lado americano em setores cruciais para a segurança nacional.

Uma interpretação alternativa das recentes restrições à exportação de semicondutores é que elas têm pouco a ver com a segurança nacional, mas visam conter o caminho de desenvolvimento econômico chinês através da absorção criativa de tecnologia disponível no exterior. Se assim for, as novas restrições marcam o fim de uma era do globalismo e da cooperação econômica e o início de outra guerra fria.

Dado o caráter crítico assumido por semicondutores hoje em dia, suas versões avançadas e sua fabricação se tornaram uma espécie de substituto para armas e exércitos usados nas “guerras por procuração” durante a guerra fria entre Estados Unidos e União Soviética. Dificultar a progressão da China na sofisticação da produção de semicondutores tornou-se peça central da política dos EUA em relação ao país. Não deixou de ser notável também como o pacote fiscal de Biden dedicado a semicondutores facilmente recebeu suporte bipartidário no país.

O caso dos semicondutores se encaixa como uma luva no que observamos ser uma reversão da globalização nos segmentos de alta tecnologia, considerados sensíveis do ponto de vista de segurança nacional, com custos ainda considerados justificáveis por autoridades governamentais. Como no caso dos tubos hidráulicos do projeto de saneamento na Faixa de Gaza, na Palestina, tudo vai depender de qual dos usos duplos é considerado prioritário.


Otaviano Canuto foi vice-presidente e diretor executivo no Banco Mundial, diretor executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de assuntos internacionais no Ministério da Fazenda e professor da USP e da Unicamp. Atualmente é membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente da Brookings Institution e professor na Elliott School of International Affairs da George Washington University



COLUNA PUBLICADA NA FOLHA DE S.PAULO 

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Bens de uso duplo, semicondutores e desglobalização

Em 2017, quando era um dos diretores-executivos do Banco Mundial, visitei em missão de trabalho a Faixa de Gaza, na Palestina. Um projeto de saneamento financiado pelo Banco para uma área residencial sujeita a enchentes de fezes quando chovia muito estava parado por proibição de entrada de tubos hidráulicos. Quando conversamos com a autoridade militar israelense responsável pelo bloqueio dos tubos, ele nos disse que o problema estava em sua possível dupla utilização, civil ou militar.

Lembro disso ao ver as referências à segurança nacional em argumentos contra o comércio livre de bens de dupla utilização. Como abordamos aqui, a segurança nacional é o argumento mais poderoso contra a globalização irrestrita e impulsionada pelo mercado. É também o mais difícil de avaliar, pois não pode ser analisado diretamente por pesquisadores, analistas de mercado ou jornalistas – é preciso tomar o que dizem as fontes de inteligência de governos.

O argumento encontrou apoio bipartidário nos Estados Unidos em relação à China. Um grave problema sempre pode vir caso uma interpretação ampla de “uso duplo” resulte na restrição de muitos bens e serviços – de até roupas ou de medicamentos usados ​​pelos militares. Como o conceito tem o potencial de levar a restrições amplas e abrangentes em vários setores, há o risco de que estimule guerras econômicas sob a forma de retaliações.

A principal categoria visada até o momento é o setor de semicondutores. Os semicondutores são um componente integral de vários produtos de consumo, como carros e smartphones, mas também podem ser usados em bens de uso duplo, como aeronaves civis e militares. Além disso, são usados ​​em supercomputação e inteligência artificial, áreas com implicações potenciais em termos de segurança nacional.

A disputa no caso diz respeito aos segmentos mais avançados na indústria de semicondutores. Há que se distinguir entre semicondutores mais avançados com 3-14 nanômetros de tamanho e os chips mais simples e baratos acima de 14 nanômetros.

Taiwan e Coreia do Sul têm um domínio da tecnologia de fabricação dos chips de ponta e ocupam perto de 50% do mercado mundial de semicondutores. Os Estados Unidos respondem por 12% do mercado global, mas suas empresas locais não produzem chips avançados em grande escala. Por outro lado, muitos estágios do processo de produção de semicondutores dependem de tecnologias originárias nos EUA, inclusive os equipamentos necessários para a produção dos chips mais avançados.

No passado recente, a China ocupou larga parcela dos mercados de semicondutores baratos, com nanômetros mais altos. Pode-se ver no caso uma tentativa de repetição da trajetória na qual o país se utilizou bem da globalização para ascender nas escalas de valor adicionado – e consequentemente na escada da renda per capita. As dificuldades criadas pelos Estados Unidos no caso dos semicondutores consistem justamente em cortar o acesso a degraus da escada que estão no exterior. A China terá de construí-los ela própria.

Em outubro de 2022, os Estados Unidos anunciaram amplos controles de exportação na indústria de semicondutores mirando na China. Os Estados Unidos não exportam muitos semicondutores diretamente para a China. No entanto, os controles de exportação visaram países terceiros, ou seja, não os próprios Estados Unidos ou a China, e sim países fabricantes de chips que usam software e/ou máquinas dos EUA em suas instalações de fabricação.

De acordo com as restrições, qualquer semicondutor fabricado com tecnologia americana para uso em supercomputação ou inteligência artificial apenas pode ser vendido para a China com uma licença de exportação emitida pelos Estados Unidos, licença essa difícil de obter. Dado que quase todos os semicondutores são produzidos usando tecnologia dos Estados Unidos, esta regra abrange efetivamente toda a indústria global.

Os países terceiros estão submetidos à seguinte escolha: buscar as licenças de exportação exigidas pelos Estados Unidos ou deixar de usar tecnologia e equipamentos destes. Vem daí um uso crescente da frase “interdependência armada” para caracterizar como os Estados Unidos usaram a interdependência inerente ao comércio e às cadeias de suprimentos globais para forçar seus parceiros comerciais a se alinharem com sua guerra econômica contra a China. Além disso, seus cidadãos estão proibidos de trabalhar com produtores de chips chineses, a não ser com aprovação específica. Com estas medidas, os EUA procuram impedir que a China avance tecnologicamente usando o que já existe na fronteira no lado americano em setores cruciais para a segurança nacional.

Uma interpretação alternativa das recentes restrições à exportação de semicondutores é que elas têm pouco a ver com a segurança nacional, mas visam conter o caminho de desenvolvimento econômico chinês através da absorção criativa de tecnologia disponível no exterior. Se assim for, as novas restrições marcam o fim de uma era do globalismo e da cooperação econômica e o início de outra guerra fria.

Dado o caráter crítico assumido por semicondutores hoje em dia, suas versões avançadas e sua fabricação se tornaram uma espécie de substituto para armas e exércitos usados nas “guerras por procuração” durante a guerra fria entre Estados Unidos e União Soviética. Dificultar a progressão da China na sofisticação da produção de semicondutores tornou-se peça central da política dos EUA em relação ao país. Não deixou de ser notável também como o pacote fiscal de Biden dedicado a semicondutores facilmente recebeu suporte bipartidário no país.

O caso dos semicondutores se encaixa como uma luva no que observamos ser uma reversão da globalização nos segmentos de alta tecnologia, considerados sensíveis do ponto de vista de segurança nacional, com custos ainda considerados justificáveis por autoridades governamentais. Como no caso dos tubos hidráulicos do projeto de saneamento na Faixa de Gaza, na Palestina, tudo vai depender de qual dos usos duplos é considerado prioritário.


Otaviano Canuto foi vice-presidente e diretor executivo no Banco Mundial, diretor executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de assuntos internacionais no Ministério da Fazenda e professor da USP e da Unicamp. Atualmente é membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente da Brookings Institution e professor na Elliott School of International Affairs da George Washington University



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