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														Pode-se dizer que, nas economias avançadas, o apetite por medidas comerciais e políticas industriais discriminando agentes externos aumentou na história recente. Exemplo disso – não o único – está na adoção mais frequente de tarifas punitivas, restrições à exportação e mandatos de compra local pelos Estados Unidos.

Vários analistas agora falam em uma tendência à “desglobalização” em curso, entendendo-se esta como uma fragmentação comercial do mundo, revertendo-se ou reconfigurando-se a integração via cadeias globais ou regionais que esteve subjacente ao extraordinário aumento do comércio exterior em relação ao PIB dos países a partir dos anos 90. Um processo que permitiu inclusive a retirada de quase 1 bilhão de pessoas da situação de pobreza no mundo.

Podem-se localizar quatro ordens de justificativas para a adoção de tais medidas. Começando por razões de natureza “social”. Após a crise financeira global de 2008, cresceu entre habitantes de regiões avançadas a crença de que a globalização e a transferência de empregos industriais para a Ásia – ou a imigração, em alguns casos – seriam responsáveis pelas dificuldades de progresso enfrentadas por suas classes de renda média e baixa. Isso culminou em vitórias eleitorais ou no aumento do eleitorado de líderes populistas que se aproveitaram desse sentimento, prometendo a reversão do que ocorreu nas décadas anteriores.

Uma segunda fonte de justificativas tem sido uma suposta busca de “resiliência perante choques”, algo exacerbado pela vulnerabilidade a choques atribuída à globalização durante a pandemia, quando ocorreram severas rupturas nas cadeias produtivas globais.

“Segurança nacional” tem sido também uma fonte de justificativas frequentemente usada. A invasão da Ucrânia pela Rússia trouxe os “riscos geopolíticos” para o centro da mesa, mas na verdade a rivalidade entre os Estados Unidos e a China já havia gerado narrativas sobre a reversão da globalização.

Finalmente, a agenda de descarbonização contra a “mudança climática” também gerou argumentos para a adoção de medidas discricionárias sobre agentes externos. Tal luta seria onerosa e medidas compensatórias ou defensivas para os locais seriam justificáveis ou necessárias. Enquadra-se aí, por exemplo, a proposta aprovada pela Comissão Europeia de adoção de tarifas comerciais compensatórias para seus produtores locais, obrigados a pagar um preço pelo carbono que usam. O objetivo da medida seria evitar o risco de vazamento de carbono, equalizando o preço do carbono entre produtos domésticos e importações em setores selecionados de modo a evitar a mera substituição da produção local por importações de áreas livres de preços de carbono.

Existem, porém, a nosso juízo, algumas razões para acreditar que essa “desglobalização” será limitada ou relativa. Antes de tudo, cabe lembrar que a configuração de cadeias globais ou regionais não é fortuita, tendo surgido por razões de eficiência de custos. Abandonar tal configuração implica custos para as cadeias de valor e seus usuários.

Tome-se o caso da resiliência a choques. Em muitos setores, as empresas podem optar por arcar com tais custos, acumulando estoques em pontos das cadeias e/ou duplicando trechos dessas cadeias em diferentes pontos geográficos. Mas os incentivos microeconômicos enfrentados pelas empresas estabelecem limites de custo-benefício a tal cálculo de renúncia à eficiência para aumento da resiliência a choques. Há que se considerar também que, sem a existência das cadeias no exterior, os efeitos de choques locais também seriam maximizados.

E quanto a políticas públicas desenhadas para afetar aqueles cálculos privados em favor do que desejam os formuladores das chamadas “políticas industriais”? Inclusive para promover a “reindustrialização” e o emprego manufatureiro prometidos como justificativas “sociais”? Vale observar nesse caso como as políticas tarifárias comerciais adotadas pelo presidente Trump contra a China provaram ser um fardo para o emprego na própria indústria manufatureira dos Estados Unidos, conforme estudos de economistas do Federal Reserve dos EUA – além, é claro, da agricultura diretamente atingida pela guerra comercial com a China.

Razões de “segurança nacional” talvez sejam aquelas de maior alcance e influência. Riscos geopolíticos e a rivalidade geoeconômica já se fazem presentes na implementação de “políticas industriais” em segmentos como semicondutores avançados, equipamentos médicos e militares, privacidade de dados e afins. O acesso a minerais críticos para o uso dessas tecnologias e para a transição energética também crescerá como objeto de geopolítica.

A reversão da globalização não será buscada, porém, no caso do comércio exterior dos demais itens. Haverá ônus para aqueles que optem por uma demarcação exagerada do que deve ser considerado “estratégico”.

A propósito, cabe notar que a transformação digital acelerada vem ampliando o escopo para uma possível globalização de serviços. O escopo dos serviços como motor do desenvolvimento tem um caminho aberto pela frente.

Do lado chinês, pode-se supor uma preferência por não derramar o caldo da globalização que facilitou seu sucesso no crescimento-com-transformação-estrutural, ainda que tenha sentido os novos rumos na área geopolítica e dado sinais de busca de menor dependência do exterior.

Pode-se certamente esperar uma globalização mais lenta e alguma regionalização, ou uma desaceleração do crescimento dos fluxos transfronteiriços de bens, capital e pessoas, algo já presente desde a crise financeira global, em vez da “desglobalização” entendida como declínio absoluto e/ou fragmentação.

O aumento da atividade transfronteiriça digital também sugere que a natureza e o escopo da globalização devem evoluir nos próximos anos, pois os fluxos podem continuar diminuindo em áreas tangíveis, como o comércio de bens, enquanto aceleram nas áreas intangíveis, incluindo comércio de serviços e fluxos de dados transfronteiriços.

Vale lembrar aos entusiasmados com as possibilidades de mover segmentos de cadeias globais para mais perto de mercados ricos (near-shoring) ou aliados (friend-shoring) que seu sucesso não pode ser dado como garantido. Há um dever de casa a ser cumprido por tais países para que as supostas oportunidades sejam viáveis. Um dever de casa a rigor já presente antes mesmo das atuais circunstâncias, sem o qual o cálculo de custo-benefício privado não estará pronto para satisfazer os desejos.

Políticas industriais implicam custos econômicos (fiscais, ineficiência), compensáveis na perspectiva de um país apenas na medida em que, em certo horizonte temporal, os efeitos sejam tais que não apenas venham a torná-las redundantes, como também compensem tais custos. As razões para o desencanto relativo com a globalização não parecem ser suficientes para sua adoção generalizada.

COLUNA PUBLICADA NA FOLHA DE S.PAULO

 

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Política industrial e “desglobalização”

Pode-se dizer que, nas economias avançadas, o apetite por medidas comerciais e políticas industriais discriminando agentes externos aumentou na história recente. Exemplo disso – não o único – está na adoção mais frequente de tarifas punitivas, restrições à exportação e mandatos de compra local pelos Estados Unidos.

Vários analistas agora falam em uma tendência à “desglobalização” em curso, entendendo-se esta como uma fragmentação comercial do mundo, revertendo-se ou reconfigurando-se a integração via cadeias globais ou regionais que esteve subjacente ao extraordinário aumento do comércio exterior em relação ao PIB dos países a partir dos anos 90. Um processo que permitiu inclusive a retirada de quase 1 bilhão de pessoas da situação de pobreza no mundo.

Podem-se localizar quatro ordens de justificativas para a adoção de tais medidas. Começando por razões de natureza “social”. Após a crise financeira global de 2008, cresceu entre habitantes de regiões avançadas a crença de que a globalização e a transferência de empregos industriais para a Ásia – ou a imigração, em alguns casos – seriam responsáveis pelas dificuldades de progresso enfrentadas por suas classes de renda média e baixa. Isso culminou em vitórias eleitorais ou no aumento do eleitorado de líderes populistas que se aproveitaram desse sentimento, prometendo a reversão do que ocorreu nas décadas anteriores.

Uma segunda fonte de justificativas tem sido uma suposta busca de “resiliência perante choques”, algo exacerbado pela vulnerabilidade a choques atribuída à globalização durante a pandemia, quando ocorreram severas rupturas nas cadeias produtivas globais.

“Segurança nacional” tem sido também uma fonte de justificativas frequentemente usada. A invasão da Ucrânia pela Rússia trouxe os “riscos geopolíticos” para o centro da mesa, mas na verdade a rivalidade entre os Estados Unidos e a China já havia gerado narrativas sobre a reversão da globalização.

Finalmente, a agenda de descarbonização contra a “mudança climática” também gerou argumentos para a adoção de medidas discricionárias sobre agentes externos. Tal luta seria onerosa e medidas compensatórias ou defensivas para os locais seriam justificáveis ou necessárias. Enquadra-se aí, por exemplo, a proposta aprovada pela Comissão Europeia de adoção de tarifas comerciais compensatórias para seus produtores locais, obrigados a pagar um preço pelo carbono que usam. O objetivo da medida seria evitar o risco de vazamento de carbono, equalizando o preço do carbono entre produtos domésticos e importações em setores selecionados de modo a evitar a mera substituição da produção local por importações de áreas livres de preços de carbono.

Existem, porém, a nosso juízo, algumas razões para acreditar que essa “desglobalização” será limitada ou relativa. Antes de tudo, cabe lembrar que a configuração de cadeias globais ou regionais não é fortuita, tendo surgido por razões de eficiência de custos. Abandonar tal configuração implica custos para as cadeias de valor e seus usuários.

Tome-se o caso da resiliência a choques. Em muitos setores, as empresas podem optar por arcar com tais custos, acumulando estoques em pontos das cadeias e/ou duplicando trechos dessas cadeias em diferentes pontos geográficos. Mas os incentivos microeconômicos enfrentados pelas empresas estabelecem limites de custo-benefício a tal cálculo de renúncia à eficiência para aumento da resiliência a choques. Há que se considerar também que, sem a existência das cadeias no exterior, os efeitos de choques locais também seriam maximizados.

E quanto a políticas públicas desenhadas para afetar aqueles cálculos privados em favor do que desejam os formuladores das chamadas “políticas industriais”? Inclusive para promover a “reindustrialização” e o emprego manufatureiro prometidos como justificativas “sociais”? Vale observar nesse caso como as políticas tarifárias comerciais adotadas pelo presidente Trump contra a China provaram ser um fardo para o emprego na própria indústria manufatureira dos Estados Unidos, conforme estudos de economistas do Federal Reserve dos EUA – além, é claro, da agricultura diretamente atingida pela guerra comercial com a China.

Razões de “segurança nacional” talvez sejam aquelas de maior alcance e influência. Riscos geopolíticos e a rivalidade geoeconômica já se fazem presentes na implementação de “políticas industriais” em segmentos como semicondutores avançados, equipamentos médicos e militares, privacidade de dados e afins. O acesso a minerais críticos para o uso dessas tecnologias e para a transição energética também crescerá como objeto de geopolítica.

A reversão da globalização não será buscada, porém, no caso do comércio exterior dos demais itens. Haverá ônus para aqueles que optem por uma demarcação exagerada do que deve ser considerado “estratégico”.

A propósito, cabe notar que a transformação digital acelerada vem ampliando o escopo para uma possível globalização de serviços. O escopo dos serviços como motor do desenvolvimento tem um caminho aberto pela frente.

Do lado chinês, pode-se supor uma preferência por não derramar o caldo da globalização que facilitou seu sucesso no crescimento-com-transformação-estrutural, ainda que tenha sentido os novos rumos na área geopolítica e dado sinais de busca de menor dependência do exterior.

Pode-se certamente esperar uma globalização mais lenta e alguma regionalização, ou uma desaceleração do crescimento dos fluxos transfronteiriços de bens, capital e pessoas, algo já presente desde a crise financeira global, em vez da “desglobalização” entendida como declínio absoluto e/ou fragmentação.

O aumento da atividade transfronteiriça digital também sugere que a natureza e o escopo da globalização devem evoluir nos próximos anos, pois os fluxos podem continuar diminuindo em áreas tangíveis, como o comércio de bens, enquanto aceleram nas áreas intangíveis, incluindo comércio de serviços e fluxos de dados transfronteiriços.

Vale lembrar aos entusiasmados com as possibilidades de mover segmentos de cadeias globais para mais perto de mercados ricos (near-shoring) ou aliados (friend-shoring) que seu sucesso não pode ser dado como garantido. Há um dever de casa a ser cumprido por tais países para que as supostas oportunidades sejam viáveis. Um dever de casa a rigor já presente antes mesmo das atuais circunstâncias, sem o qual o cálculo de custo-benefício privado não estará pronto para satisfazer os desejos.

Políticas industriais implicam custos econômicos (fiscais, ineficiência), compensáveis na perspectiva de um país apenas na medida em que, em certo horizonte temporal, os efeitos sejam tais que não apenas venham a torná-las redundantes, como também compensem tais custos. As razões para o desencanto relativo com a globalização não parecem ser suficientes para sua adoção generalizada.

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