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														A “tempestade perfeita” que desabou sobre a economia global a partir de 2020 – a combinação de pandemia, invasão da Ucrânia, fenômenos climáticos adversos mais intensos e frequentes –, acompanhada de políticas fiscais e monetárias contracíclicas agressivas como resposta, trouxe mudanças duráveis no regime macroeconômico das economias avançadas. Nos 12 anos que se seguiram à crise financeira global de 2008-09, baixas taxas de inflação e de juros predominaram, bem como a abundância de liquidez fornecida pelos bancos centrais. A partir de 2021, assistimos à forte subida nas taxas de inflação, que exibiram alguma resistência para baixo apesar da significativa elevação nas taxas de juros e do início de políticas de redução de balanços de bancos centrais (o “aperto quantitativo”) desde o ano passado.

Abre-se a pergunta: quão durável será essa mudança de regime macroeconômico? Passado o momento de aperto monetário e consequente estabilização inflacionária em patamares mais baixos, em dois anos ou mais voltarão as taxas de juros nas economias avançadas a níveis tão baixos quanto os das últimas décadas? Ou algo fundamental mudou, aumentando a frequência de choques de preços e a necessidade de juros mais altos?

Para os economistas, essa pergunta equivale a: “para onde vão as taxas ‘naturais’ de juros?”. A taxa “natural” de juros em uma economia é aquela sobre a qual, nas condições vigentes, não há pressões inflacionárias nem deflacionárias, ou seja, a inflação é estável e o produto da economia corresponde a seu potencial. É a taxa na qual a demanda agregada é igual à oferta agregada, o que equivale a dizer, a renda não consumida iguala a demanda por investimentos.

Não se trata de algo diretamente observável e o máximo que se almeja é estimá-la como uma variável latente, a partir dos dados e modelos com hipóteses. É também algo que se usa como uma referência de médio e longo prazos, ou seja, para além de flutuações cíclicas da economia.

A taxa natural de juros, em termos reais, constitui uma espécie de âncora de referência para a política monetária. Com efeito, quando somada à taxa que corresponde à meta de inflação perseguida pelo Banco Central, tem-se uma taxa nominal de juros em que o Banco Central estaria contente com a taxa de inflação e não estaria propulsando ou desacelerando a atividade econômica para além ou abaixo de seu ritmo potencial.

Essa taxa natural de juros refletiria fatores estruturais que comandam oferta e demanda agregadas. A taxa natural muda ao longo do tempo conforme evoluam esses fatores estruturais que operam como uma âncora gravitacional.

Pois bem. Por que as taxas naturais de juros declinaram sustentadamente nas últimas décadas nas economias desenvolvidas? Que fatores estruturais no lado real da economia as conduziram nessa direção? Quatro são frequentemente apontados – três no lado da poupança e outro do lado do investimento.

Primeiro, demografia e envelhecimento da população. Dada a evolução das pirâmides etárias, grandes parcelas das populações de economias avançadas passaram pela fase intensiva em poupar de suas vidas. Isso elevou a poupança global e rebaixou taxas de juro reais. Além disso, o aumento da expectativa de vida levou essas pessoas a poupar ainda mais para aposentadorias mais longas.

O aumento da desigualdade de renda e riqueza foi outro fator estrutural, já que a detenção maior de recursos por famílias mais ricas tendeu a aumentar volumes de poupança, pressionando taxas de juros para baixo. Um terceiro fator estrutural foi a ascensão de economias não avançadas – especialmente a China – com elevadas taxas de poupança e interessadas em guardar parte de suas reservas – oficiais ou privadas – de riqueza em ativos considerados mais seguros, em economias avançadas.

Um quarto fator vem do lado dos investimentos. Uma tendência surpreendente nos anos que antecederam a “tempestade perfeita” foi a permanência de baixos níveis de investimento nas economias avançadas, apesar da grande queda nas taxas de juros reais. Hipóteses sobre isso estão em geral associadas à evolução tecnológica: as novas frentes de avanço até aqui não têm impulsionado produtividade e/ou acumulação de ativos físicos como as anteriores.

O descompasso entre a demanda por ativos pelas poupanças crescentes e a baixa incorporação de novos ativos reais ensejou inclusive forte procura por – e valorização – de ativos já existentes, suscitando o que chamamos de uma “macroeconomia liderada por bolhas de ativos”.

Levando em conta aqueles fatores estruturais, entre outros, não surpreende, pois, que o Fundo Monetário Internacional (FMI), no segundo capítulo de seu relatório sobre a “Perspectiva Econômica Mundial” de abril, tenha concluído que as forças de longo prazo apontam para o retorno das taxas naturais de juros nas economias avançadas a patamares baixos. Após, claro, a inflação ser trazida de volta nos próximos anos, ao longo dos quais taxas de juros mais altas estarão presentes. Supondo também que as expectativas de inflação dos agentes econômicos não abandonem suas âncoras em níveis mais baixos.

A mudança atual de regime macroeconômico no que diz respeito a taxas de inflação e de juros seria então temporária. O relatório do FMI alude à possibilidade até de retorno de políticas monetárias “não convencionais”, como as adotadas quando as taxas de juros se moveram tendencialmente a patamares negativos em termos reais.

Há fatores frequentemente sugeridos como apontando na direção oposta, no que diz respeito à inflação ou, no mínimo, choques recorrentes de preços. A transição energética tenderá a trazer choques de preços.

A “desglobalização” parcial também trará ineficiência e choques de custos, ao passo que a globalização ajudou a manter baixa a inflação nas economias avançadas nas décadas passadas. Há, por outro lado, boas razões para crer que tais choques – para cima e para baixo – nunca foram significativos o suficiente para ditar a evolução de taxas de inflação e de juros.

Portanto, cabe esperar um retorno ao normal de juros mais baixos nas economias avançadas. Segundo o relatório do FMI, embora o conjunto de economias emergentes e em desenvolvimento não tenha acompanhado as avançadas na baixa de taxas naturais de juros no período anterior à “tempestade perfeita”, suas tendências demográficas e de produtividade e tecnologia também apontariam nessa direção descendente no futuro.

COLUNA PUBLICADA NA FOLHA DE S.PAULO


 Otaviano Canuto foi vice-presidente e diretor executivo no Banco Mundial, diretor executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de assuntos internacionais no Ministério da Fazenda e professor da USP e da Unicamp. Atualmente é membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente da Brookings Institution e professor na Elliott School of International Affairs da George Washington University. 

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Para onde vão as taxas naturais de juros

A “tempestade perfeita” que desabou sobre a economia global a partir de 2020 – a combinação de pandemia, invasão da Ucrânia, fenômenos climáticos adversos mais intensos e frequentes –, acompanhada de políticas fiscais e monetárias contracíclicas agressivas como resposta, trouxe mudanças duráveis no regime macroeconômico das economias avançadas. Nos 12 anos que se seguiram à crise financeira global de 2008-09, baixas taxas de inflação e de juros predominaram, bem como a abundância de liquidez fornecida pelos bancos centrais. A partir de 2021, assistimos à forte subida nas taxas de inflação, que exibiram alguma resistência para baixo apesar da significativa elevação nas taxas de juros e do início de políticas de redução de balanços de bancos centrais (o “aperto quantitativo”) desde o ano passado.

Abre-se a pergunta: quão durável será essa mudança de regime macroeconômico? Passado o momento de aperto monetário e consequente estabilização inflacionária em patamares mais baixos, em dois anos ou mais voltarão as taxas de juros nas economias avançadas a níveis tão baixos quanto os das últimas décadas? Ou algo fundamental mudou, aumentando a frequência de choques de preços e a necessidade de juros mais altos?

Para os economistas, essa pergunta equivale a: “para onde vão as taxas ‘naturais’ de juros?”. A taxa “natural” de juros em uma economia é aquela sobre a qual, nas condições vigentes, não há pressões inflacionárias nem deflacionárias, ou seja, a inflação é estável e o produto da economia corresponde a seu potencial. É a taxa na qual a demanda agregada é igual à oferta agregada, o que equivale a dizer, a renda não consumida iguala a demanda por investimentos.

Não se trata de algo diretamente observável e o máximo que se almeja é estimá-la como uma variável latente, a partir dos dados e modelos com hipóteses. É também algo que se usa como uma referência de médio e longo prazos, ou seja, para além de flutuações cíclicas da economia.

A taxa natural de juros, em termos reais, constitui uma espécie de âncora de referência para a política monetária. Com efeito, quando somada à taxa que corresponde à meta de inflação perseguida pelo Banco Central, tem-se uma taxa nominal de juros em que o Banco Central estaria contente com a taxa de inflação e não estaria propulsando ou desacelerando a atividade econômica para além ou abaixo de seu ritmo potencial.

Essa taxa natural de juros refletiria fatores estruturais que comandam oferta e demanda agregadas. A taxa natural muda ao longo do tempo conforme evoluam esses fatores estruturais que operam como uma âncora gravitacional.

Pois bem. Por que as taxas naturais de juros declinaram sustentadamente nas últimas décadas nas economias desenvolvidas? Que fatores estruturais no lado real da economia as conduziram nessa direção? Quatro são frequentemente apontados – três no lado da poupança e outro do lado do investimento.

Primeiro, demografia e envelhecimento da população. Dada a evolução das pirâmides etárias, grandes parcelas das populações de economias avançadas passaram pela fase intensiva em poupar de suas vidas. Isso elevou a poupança global e rebaixou taxas de juro reais. Além disso, o aumento da expectativa de vida levou essas pessoas a poupar ainda mais para aposentadorias mais longas.

O aumento da desigualdade de renda e riqueza foi outro fator estrutural, já que a detenção maior de recursos por famílias mais ricas tendeu a aumentar volumes de poupança, pressionando taxas de juros para baixo. Um terceiro fator estrutural foi a ascensão de economias não avançadas – especialmente a China – com elevadas taxas de poupança e interessadas em guardar parte de suas reservas – oficiais ou privadas – de riqueza em ativos considerados mais seguros, em economias avançadas.

Um quarto fator vem do lado dos investimentos. Uma tendência surpreendente nos anos que antecederam a “tempestade perfeita” foi a permanência de baixos níveis de investimento nas economias avançadas, apesar da grande queda nas taxas de juros reais. Hipóteses sobre isso estão em geral associadas à evolução tecnológica: as novas frentes de avanço até aqui não têm impulsionado produtividade e/ou acumulação de ativos físicos como as anteriores.

O descompasso entre a demanda por ativos pelas poupanças crescentes e a baixa incorporação de novos ativos reais ensejou inclusive forte procura por – e valorização – de ativos já existentes, suscitando o que chamamos de uma “macroeconomia liderada por bolhas de ativos”.

Levando em conta aqueles fatores estruturais, entre outros, não surpreende, pois, que o Fundo Monetário Internacional (FMI), no segundo capítulo de seu relatório sobre a “Perspectiva Econômica Mundial” de abril, tenha concluído que as forças de longo prazo apontam para o retorno das taxas naturais de juros nas economias avançadas a patamares baixos. Após, claro, a inflação ser trazida de volta nos próximos anos, ao longo dos quais taxas de juros mais altas estarão presentes. Supondo também que as expectativas de inflação dos agentes econômicos não abandonem suas âncoras em níveis mais baixos.

A mudança atual de regime macroeconômico no que diz respeito a taxas de inflação e de juros seria então temporária. O relatório do FMI alude à possibilidade até de retorno de políticas monetárias “não convencionais”, como as adotadas quando as taxas de juros se moveram tendencialmente a patamares negativos em termos reais.

Há fatores frequentemente sugeridos como apontando na direção oposta, no que diz respeito à inflação ou, no mínimo, choques recorrentes de preços. A transição energética tenderá a trazer choques de preços.

A “desglobalização” parcial também trará ineficiência e choques de custos, ao passo que a globalização ajudou a manter baixa a inflação nas economias avançadas nas décadas passadas. Há, por outro lado, boas razões para crer que tais choques – para cima e para baixo – nunca foram significativos o suficiente para ditar a evolução de taxas de inflação e de juros.

Portanto, cabe esperar um retorno ao normal de juros mais baixos nas economias avançadas. Segundo o relatório do FMI, embora o conjunto de economias emergentes e em desenvolvimento não tenha acompanhado as avançadas na baixa de taxas naturais de juros no período anterior à “tempestade perfeita”, suas tendências demográficas e de produtividade e tecnologia também apontariam nessa direção descendente no futuro.

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