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							O relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC) da ONU divulgado no início do mês passado não deixou margem a dúvidas. A julgar por suas estimativas, será necessário acelerar o passo na contenção global de emissões de carbono, caso se queira que aumentos já esperados nas temperaturas médias globais fiquem abaixo de 2 ou 1,5 graus Celsius e suas consequências climáticas sejam menos desastrosas. Mesmo que as emissões de gases de efeito estufa sejam substancialmente reduzidas nas próximas décadas, o aquecimento global vai continuar por pelo menos mais um século.


Para que se tenha uma ideia do que está em jogo, vejam esses números citados por Jean Pisani-Ferry em um trabalho também do mês passado para o Peterson Institute for International Economics. Partindo dos níveis de emissão anteriores à pandemia (durante a qual as emissões caíram), o estoque atmosférico de gases de efeito estufa compatível com a contenção do aumento da temperatura global em 2 graus Celsius seria alcançado em menos de 25 anos. O período encurta para 7 anos no caso de o limite ser reduzido para 1,5 graus.

Segundo projeções da Agência Internacional de Energia e cálculos do FMI (2021), depois de declinarem durante a pandemia, as emissões globais de CO2 de combustível fóssil tendem a aumentar em cerca de 20% até 2030. Isso contrasta com a queda de 25 a 50%, necessária para a meta de aquecimento de 1,5 a 2 graus. Limitar o aumento da temperatura exigirá menos suavidade e gradualismo do que se contava até recentemente.

O reconhecimento da urgência aparece no fato de que, segundo relatório da Agência Internacional de Energia (IEA), países responsáveis por cerca de 70% das emissões globais de carbono e do PIB mundial já se comprometeram com metas de redução a zero até 2050 ou 2060. Contudo, essa “descarbonização” corresponderá a uma transição plena de desafios.

A transição para “zero” emissões envolverá três processos econômicos simultâneos (Pisany-Ferry, 2021). Antes de tudo, uma alteração significativa nos preços relativos de bens e serviços, com estes passando a refletir a intensidade de uso do carbono, cujo preço terá de subir de zero a patamares significativos. Gaspar e Parry (2021), do FMI, propõem que, no plano internacional, medidas sejam tomadas para atingir um preço de carbono igual ou superior a US$ 75 por tonelada até 2030.

Tal preço do carbono poderá ser estabelecido e cobrado de forma tributária explícita e/ou indiretamente mediante os efeitos de regulamentações contrárias ou limites nos usos. A descarbonização será ínfima se o preço do carbono continuar sendo o de um “bem livre” da natureza. Preços do carbono também terão de estar entre os fatores influenciando o comportamento e o modo de vida das pessoas.

Adicionalmente, trabalhadores terão de ser realocados das atividades intensivas em carbono para seus substitutos verdes. Haverá não apenas o desafio de requalificação, como também o de assegurar que novos empregos sejam suficientemente criados nas atividades dinâmicas. Sabe-se, por exemplo, que a produção de carros elétricos demanda menos mão de obra que a de veículos com motor à combustão.

Terceiro, haverá obsolescência acelerada dos estoques existentes de ativos físicos (máquinas e equipamentos, construções, veículos) e intangíveis associados a atividades intensivas em carbono. A contrapartida terá de ser o investimento acelerado nos novos ativos que lhes substituirão.

A boa notícia em relação a tal substituição é que a evolução rumo a tecnologias mais limpas e com custos declinantes tem ocorrido. A má notícia são os obstáculos de outra natureza a tais investimentos – particularmente no caso da infraestrutura verde em países não avançados, conforme abordamos aqui há dois meses.

A transição da descarbonização terá possivelmente impactos regressivos de renda. Basta observar que, por exemplo, imóveis e suas necessidades de reconstrução ou adaptação correspondem a parcela maior dos patrimônios na parte de baixo da pirâmide de renda. A taxação direta do carbono terá impactos diferenciados sobre diferentes grupos urbanos. Do mesmo modo, há que não se perder de vista as necessidades de requalificação e emprego de trabalhadores diretamente afetados. Seria importante assegurar mecanismos de transferência de renda dentro de – e entre – países associados à precificação do carbono, para mitigar impactos regressivos do combate à mudança climática.

A trajetória de descarbonização trará consequências também para as contas públicas (veja Zenius (2021) no caso da Europa). Além de gastos compensatórios de impactos regressivos da precificação do carbono acima mencionados, despesas públicas necessárias em infraestrutura para viabilizar a transição serão requeridas. A não ser na hipótese pouco provável de cobertura total de gastos com alguma taxação de carbono, a tendência será a de aumentos na dívida pública. No caso, sem injustiça intertemporal, já que as futuras gerações agradecerão não ter que viver com um clima permanentemente ainda mais adverso.

E quanto ao PIB e seu crescimento durante a transição? Aqui se repete a dualidade acima abordada. Por um lado, haverá destruição de capital, além de um choque de preços relativos que, como observa Jean Pisani-Ferry, guarda semelhanças com o “choque de oferta” que aconteceu quando os preços do petróleo foram súbita e drasticamente elevados nos anos 70, inclusive reduzindo temporariamente o crescimento potencial. Com a diferença de que, enquanto os preços do petróleo foram revertidos mais tarde, o preço do carbono não poderá fazê-lo se for para o mundo ser descarbonizado. Caso a necessidade de maiores taxas de investimento no PIB acompanhando a descarbonização se choque com limites de capacidade de oferta, o consumo terá de adaptar-se para baixo ao longo da transição.

Por outro lado, é claro que as tecnologias mais limpas também oferecerão oportunidades de elevação de produtividade. De qualquer modo, o retorno socioeconômico da descarbonização tem de incluir evitar que ondas de calor, enchentes, furacões, secas, inundações e temporais como os deste ano se tornem ainda mais intensos e frequentes, até porque o custo disso seria perdas cada vez mais significativas para o PIB das nações.

Otaviano Canuto é membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente do Brookings Institute, professor na Elliott School of International Affairs da George Washington University e principal do Center for Macroeconomics and Development em Washington. Foi vice-presidente e diretor executivo no Banco Mundial, diretor executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de assuntos internacionais no Ministério da Fazenda e professor da USP e da Unicamp.

COLUNA PUBLICADA NA FOLHA DE SÃO PAULO

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Por que e como descarbonizar a economia

O relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC) da ONU divulgado no início do mês passado não deixou margem a dúvidas. A julgar por suas estimativas, será necessário acelerar o passo na contenção global de emissões de carbono, caso se queira que aumentos já esperados nas temperaturas médias globais fiquem abaixo de 2 ou 1,5 graus Celsius e suas consequências climáticas sejam menos desastrosas. Mesmo que as emissões de gases de efeito estufa sejam substancialmente reduzidas nas próximas décadas, o aquecimento global vai continuar por pelo menos mais um século.


Para que se tenha uma ideia do que está em jogo, vejam esses números citados por Jean Pisani-Ferry em um trabalho também do mês passado para o Peterson Institute for International Economics. Partindo dos níveis de emissão anteriores à pandemia (durante a qual as emissões caíram), o estoque atmosférico de gases de efeito estufa compatível com a contenção do aumento da temperatura global em 2 graus Celsius seria alcançado em menos de 25 anos. O período encurta para 7 anos no caso de o limite ser reduzido para 1,5 graus.

Segundo projeções da Agência Internacional de Energia e cálculos do FMI (2021), depois de declinarem durante a pandemia, as emissões globais de CO2 de combustível fóssil tendem a aumentar em cerca de 20% até 2030. Isso contrasta com a queda de 25 a 50%, necessária para a meta de aquecimento de 1,5 a 2 graus. Limitar o aumento da temperatura exigirá menos suavidade e gradualismo do que se contava até recentemente.

O reconhecimento da urgência aparece no fato de que, segundo relatório da Agência Internacional de Energia (IEA), países responsáveis por cerca de 70% das emissões globais de carbono e do PIB mundial já se comprometeram com metas de redução a zero até 2050 ou 2060. Contudo, essa “descarbonização” corresponderá a uma transição plena de desafios.

A transição para “zero” emissões envolverá três processos econômicos simultâneos (Pisany-Ferry, 2021). Antes de tudo, uma alteração significativa nos preços relativos de bens e serviços, com estes passando a refletir a intensidade de uso do carbono, cujo preço terá de subir de zero a patamares significativos. Gaspar e Parry (2021), do FMI, propõem que, no plano internacional, medidas sejam tomadas para atingir um preço de carbono igual ou superior a US$ 75 por tonelada até 2030.

Tal preço do carbono poderá ser estabelecido e cobrado de forma tributária explícita e/ou indiretamente mediante os efeitos de regulamentações contrárias ou limites nos usos. A descarbonização será ínfima se o preço do carbono continuar sendo o de um “bem livre” da natureza. Preços do carbono também terão de estar entre os fatores influenciando o comportamento e o modo de vida das pessoas.

Adicionalmente, trabalhadores terão de ser realocados das atividades intensivas em carbono para seus substitutos verdes. Haverá não apenas o desafio de requalificação, como também o de assegurar que novos empregos sejam suficientemente criados nas atividades dinâmicas. Sabe-se, por exemplo, que a produção de carros elétricos demanda menos mão de obra que a de veículos com motor à combustão.

Terceiro, haverá obsolescência acelerada dos estoques existentes de ativos físicos (máquinas e equipamentos, construções, veículos) e intangíveis associados a atividades intensivas em carbono. A contrapartida terá de ser o investimento acelerado nos novos ativos que lhes substituirão.

A boa notícia em relação a tal substituição é que a evolução rumo a tecnologias mais limpas e com custos declinantes tem ocorrido. A má notícia são os obstáculos de outra natureza a tais investimentos – particularmente no caso da infraestrutura verde em países não avançados, conforme abordamos aqui há dois meses.

A transição da descarbonização terá possivelmente impactos regressivos de renda. Basta observar que, por exemplo, imóveis e suas necessidades de reconstrução ou adaptação correspondem a parcela maior dos patrimônios na parte de baixo da pirâmide de renda. A taxação direta do carbono terá impactos diferenciados sobre diferentes grupos urbanos. Do mesmo modo, há que não se perder de vista as necessidades de requalificação e emprego de trabalhadores diretamente afetados. Seria importante assegurar mecanismos de transferência de renda dentro de – e entre – países associados à precificação do carbono, para mitigar impactos regressivos do combate à mudança climática.

A trajetória de descarbonização trará consequências também para as contas públicas (veja Zenius (2021) no caso da Europa). Além de gastos compensatórios de impactos regressivos da precificação do carbono acima mencionados, despesas públicas necessárias em infraestrutura para viabilizar a transição serão requeridas. A não ser na hipótese pouco provável de cobertura total de gastos com alguma taxação de carbono, a tendência será a de aumentos na dívida pública. No caso, sem injustiça intertemporal, já que as futuras gerações agradecerão não ter que viver com um clima permanentemente ainda mais adverso.

E quanto ao PIB e seu crescimento durante a transição? Aqui se repete a dualidade acima abordada. Por um lado, haverá destruição de capital, além de um choque de preços relativos que, como observa Jean Pisani-Ferry, guarda semelhanças com o “choque de oferta” que aconteceu quando os preços do petróleo foram súbita e drasticamente elevados nos anos 70, inclusive reduzindo temporariamente o crescimento potencial. Com a diferença de que, enquanto os preços do petróleo foram revertidos mais tarde, o preço do carbono não poderá fazê-lo se for para o mundo ser descarbonizado. Caso a necessidade de maiores taxas de investimento no PIB acompanhando a descarbonização se choque com limites de capacidade de oferta, o consumo terá de adaptar-se para baixo ao longo da transição.

Por outro lado, é claro que as tecnologias mais limpas também oferecerão oportunidades de elevação de produtividade. De qualquer modo, o retorno socioeconômico da descarbonização tem de incluir evitar que ondas de calor, enchentes, furacões, secas, inundações e temporais como os deste ano se tornem ainda mais intensos e frequentes, até porque o custo disso seria perdas cada vez mais significativas para o PIB das nações.

Otaviano Canuto é membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente do Brookings Institute, professor na Elliott School of International Affairs da George Washington University e principal do Center for Macroeconomics and Development em Washington. Foi vice-presidente e diretor executivo no Banco Mundial, diretor executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de assuntos internacionais no Ministério da Fazenda e professor da USP e da Unicamp.

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