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							O dólar norte-americano subiu dramaticamente de valor no passado recente. O índice de valor do dólar dos EUA contra seis outras moedas globais, compilado pelo Federal Reserve Bank de Saint Louis, alcançou o maior patamar dos últimos 20 anos no final de setembro. Em outubro, andou de lado, sem ser possível antever se alcançou algum pico médio ou platô. De qualquer modo, de janeiro a meados de outubro, o dólar subiu 13% em relação ao euro, 22%  em relação ao iene japonês e 6% contra moedas de economias emergentes.

Como explicar a valorização do dólar

Um fator maior subjacente à valorização do dólar está no maior rendimento em termos reais dos ativos norte-americanos em relação a outros. Por exemplo, o diferencial de rendimentos reais entre os EUA e a zona do euro, medido pelos rendimentos de títulos públicos indexados à inflação de cinco anos, emparelha bem com a depreciação do euro em relação ao dólar. Esse diferencial refletiu os movimentos mais rápidos das taxas de juros nos EUA, seguidos pelo convencimento do mercado quanto ao compromisso anti-inflacionário assumido pelo Fed, mais forte em comparação com outros bancos centrais.

Correlações similares podem ser encontradas de forma mais ampla com os diferenciais de taxas de retorno ajustadas ao risco em outros ativos de renda fixa. Dadas as alturas já alcançadas pelo dólar, mais surtos de valorização tenderão a acontecer caso os outros bancos centrais continuem a defasar na fixação das taxas de juros e/ou se o ritmo de ajuste do Fed acelerar ainda mais.

O lugar assumido por aplicações líquidas em dólares como “porto seguro”, mesmo com baixo retorno, também aumenta sua demanda em momentos de percepção de riscos mais altos e menor apetite de investidores para carregar tais riscos em suas carteiras. No período recente, eventos e riscos geopolíticos, como os decorrentes da invasão da Ucrânia pela Rússia, também contribuíram para a demanda por dólares.

Houve também, é claro, eventos pontuais e peculiares. Como a intensa depreciação da libra esterlina quando o governo britânico fez uma proposta – depois retirada – de cortes de impostos sem cobertura evidente de financiamento. O caráter idiossincrático da crise energética europeia e a altíssima probabilidade de recessão dura também representaram fatores de compressão sobre o euro.

Implicações da valorização do dólar

A forte valorização do dólar americano em relação às demais moedas, no passado recente, reforçou pressões contracionistas presentes na economia global. Por um lado, nos EUA, valorização cambial atuou na direção de mitigar a inflação local. Contudo, considerando-se o baixo peso relativo do comércio no PIB dos EUA, nada próximo de deter a inflação doméstica por si só.

Por outro lado, economias já às voltas com inflação doméstica ascendente tiveram adicionalmente de vivenciar o encarecimento local de produtos comercializáveis e, portanto, maior exigência de aperto monetário. É claro que, eventualmente, a desvalorização traz efeitos expansivos sobre saldos comerciais. Há porém o fenômeno conhecido como o efeito da “curva em J”: uma perda inicial antes de se seguir algum ganho. A balança comercial de um país piora inicialmente após uma desvalorização de sua moeda, antes de se recuperar e, em algum momento, superar seu desempenho inicial. Restrições de oferta – inclusive de energia – tenderam a alongar o fundo dessa “curva em J” em muitos dos casos de desvalorização perante o dólar. Assistiu-se, portanto, a uma predominância do efeito contracionista e inflacionário imediato.

A valorização do dólar também traz um efeito compressivo sobre economias que tenham exposição elevada a passivos denominados naquela moeda. A subida do dólar foi mais intensa em relação às moedas de outras economias avançadas. Contudo, mesmo sem passarem por desvalorização tão intensa, economias emergentes e em desenvolvimento com passivos externos em dólares viram-se mais vulneráveis.

Esse foi o caso de países da América Latina, Caribe e Europa com dívidas pública e privada em dólares – não do Brasil, onde o governo tem ativos líquidos positivos em dólar e não há descasamentos significativos de moedas em balanços privados, além de o país ser exportador líquido de commodities. Mas foi o de vários outros emergentes e países de baixa renda às voltas com endividamento externo (Sri Lanka, Zâmbia, Paquistão, Argentina, Turquia e muitos outros).

Cabe notar também o efeito negativo sobre a rentabilidade de empresas dos EUA para as quais a renda obtida no exterior tem significância. Além de prejudicar os lucros das multinacionais norte-americanas no exterior, bem como os passivos estrangeiros denominados em dólares dos mercados emergentes, de uma forma ou de outra a valorização do dólar pode levar a choques inflacionários em outros países e, assim, a políticas monetárias ainda mais apertadas. Ciclos de feedback de políticas restritivas podem sempre ser desencadeados por uma valorização drástica e repentina do dólar e a alta deste evidentemente lembrou tais riscos a todos.

O que fazer diante da pressão cambial

Há um desafio intrínseco à economia globalizada. Cada banco central olha para o seu próprio país, decidindo as políticas monetárias de acordo com o que julga necessário em relação ao dilema local entre desemprego e inflação. Mas, em uma economia tão interdependente, as repercussões das decisões de qualquer país grande vão muito além de suas fronteiras. E voltam. A probabilidade de feedback de políticas monetárias restritivas inclusive é maior quando todas elas respondem a um problema inflacionário comum.

A transmissão via taxas de câmbio se inscreve nessa interdependência. Juros mais elevados nos EUA acabam impondo aos demais a escolha entre também elevar juros e/ou deixar ocorrerem saídas de capital e desvalorização cambial.

Alguns países vêm recorrendo a intervenções diretas nas taxas de câmbio em vez de elevar taxas de juros domésticas – ou como complemento. O Japão optou por vender reservas de títulos do Tesouro dos EUA para tentar neutralizar a desvalorização cambial do iene em relação ao dólar. A Suíça também disse estar considerando vender moeda estrangeira para apoiar o franco suíço, além de aumentar as taxas de juros entre as reuniões de seu banco central.

O período após a crise financeira global de 2008-2009 viu “guerras cambiais”, quando os países se acusavam de exportar seus problemas de desemprego por meio de reduções significativas nas taxas de juros domésticas e desvalorização de suas moedas. Poderia uma “guerra cambial reversa” estar surgindo agora, já que a valorização do dólar americano exporta inflação para outros?

Uma coordenação ampla aconteceu em 1985, quando, como agora, o dólar ficou supervalorizado. O “Acordo de Plaza”, então assinado entre França, Alemanha Ocidental, Reino Unido, Japão e EUA, teve como compromisso bem-sucedido a desvalorização do dólar.

Contudo, naquele momento a inflação norte-americana estava já em declínio depois de um período longo de juros domésticos elevados, enquanto o atual aperto monetário e de condições financeiras nos EUA ainda está em curso. O cenário mais provável é o de ausência de acordos equivalentes, com alguns países se esforçando para evitar ajustes puros de taxas de juros mediante intervenção direta nos mercados de câmbio. O efeito será limitado se os fatores subjacentes que levam aos fluxos de capital e pressão cambial não mudarem.

Portanto, o “giro” ou “pivô” do dólar só ocorrerá quando ocorrer um “giro” ou “pivô” na política monetária dos EUA. Entrementes, conforme recomendado por Gita Gopinah e Paul-Olivier Gourrinchas, o Fed deveria reabrir a torneira das linhas precaucionárias de crédito com os demais bancos centrais – como durante a pandemia – para evitar os riscos destes serem colocados contra a parede em situações de súbita iliquidez em termos de dólares.

Otaviano Canuto é membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente do Brookings Institution, professor na Elliott School of International Affairs da George Washington University, professor afiliado na Universidade Politécnica Mohamed VI e principal do Center for Macroeconomics and Development em Washington. Foi vice-presidente e diretor executivo no Banco Mundial, diretor executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de assuntos internacionais no Ministério da Fazenda e professor da USP e da Unicamp.


COLUNA PUBLICADA NA FOLHA DE S.PAULO



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Por que o dólar forte é contracionista para a economia global

O dólar norte-americano subiu dramaticamente de valor no passado recente. O índice de valor do dólar dos EUA contra seis outras moedas globais, compilado pelo Federal Reserve Bank de Saint Louis, alcançou o maior patamar dos últimos 20 anos no final de setembro. Em outubro, andou de lado, sem ser possível antever se alcançou algum pico médio ou platô. De qualquer modo, de janeiro a meados de outubro, o dólar subiu 13% em relação ao euro, 22% em relação ao iene japonês e 6% contra moedas de economias emergentes.

Como explicar a valorização do dólar

Um fator maior subjacente à valorização do dólar está no maior rendimento em termos reais dos ativos norte-americanos em relação a outros. Por exemplo, o diferencial de rendimentos reais entre os EUA e a zona do euro, medido pelos rendimentos de títulos públicos indexados à inflação de cinco anos, emparelha bem com a depreciação do euro em relação ao dólar. Esse diferencial refletiu os movimentos mais rápidos das taxas de juros nos EUA, seguidos pelo convencimento do mercado quanto ao compromisso anti-inflacionário assumido pelo Fed, mais forte em comparação com outros bancos centrais.

Correlações similares podem ser encontradas de forma mais ampla com os diferenciais de taxas de retorno ajustadas ao risco em outros ativos de renda fixa. Dadas as alturas já alcançadas pelo dólar, mais surtos de valorização tenderão a acontecer caso os outros bancos centrais continuem a defasar na fixação das taxas de juros e/ou se o ritmo de ajuste do Fed acelerar ainda mais.

O lugar assumido por aplicações líquidas em dólares como “porto seguro”, mesmo com baixo retorno, também aumenta sua demanda em momentos de percepção de riscos mais altos e menor apetite de investidores para carregar tais riscos em suas carteiras. No período recente, eventos e riscos geopolíticos, como os decorrentes da invasão da Ucrânia pela Rússia, também contribuíram para a demanda por dólares.

Houve também, é claro, eventos pontuais e peculiares. Como a intensa depreciação da libra esterlina quando o governo britânico fez uma proposta – depois retirada – de cortes de impostos sem cobertura evidente de financiamento. O caráter idiossincrático da crise energética europeia e a altíssima probabilidade de recessão dura também representaram fatores de compressão sobre o euro.

Implicações da valorização do dólar

A forte valorização do dólar americano em relação às demais moedas, no passado recente, reforçou pressões contracionistas presentes na economia global. Por um lado, nos EUA, valorização cambial atuou na direção de mitigar a inflação local. Contudo, considerando-se o baixo peso relativo do comércio no PIB dos EUA, nada próximo de deter a inflação doméstica por si só.

Por outro lado, economias já às voltas com inflação doméstica ascendente tiveram adicionalmente de vivenciar o encarecimento local de produtos comercializáveis e, portanto, maior exigência de aperto monetário. É claro que, eventualmente, a desvalorização traz efeitos expansivos sobre saldos comerciais. Há porém o fenômeno conhecido como o efeito da “curva em J”: uma perda inicial antes de se seguir algum ganho. A balança comercial de um país piora inicialmente após uma desvalorização de sua moeda, antes de se recuperar e, em algum momento, superar seu desempenho inicial. Restrições de oferta – inclusive de energia – tenderam a alongar o fundo dessa “curva em J” em muitos dos casos de desvalorização perante o dólar. Assistiu-se, portanto, a uma predominância do efeito contracionista e inflacionário imediato.

A valorização do dólar também traz um efeito compressivo sobre economias que tenham exposição elevada a passivos denominados naquela moeda. A subida do dólar foi mais intensa em relação às moedas de outras economias avançadas. Contudo, mesmo sem passarem por desvalorização tão intensa, economias emergentes e em desenvolvimento com passivos externos em dólares viram-se mais vulneráveis.

Esse foi o caso de países da América Latina, Caribe e Europa com dívidas pública e privada em dólares – não do Brasil, onde o governo tem ativos líquidos positivos em dólar e não há descasamentos significativos de moedas em balanços privados, além de o país ser exportador líquido de commodities. Mas foi o de vários outros emergentes e países de baixa renda às voltas com endividamento externo (Sri Lanka, Zâmbia, Paquistão, Argentina, Turquia e muitos outros).

Cabe notar também o efeito negativo sobre a rentabilidade de empresas dos EUA para as quais a renda obtida no exterior tem significância. Além de prejudicar os lucros das multinacionais norte-americanas no exterior, bem como os passivos estrangeiros denominados em dólares dos mercados emergentes, de uma forma ou de outra a valorização do dólar pode levar a choques inflacionários em outros países e, assim, a políticas monetárias ainda mais apertadas. Ciclos de feedback de políticas restritivas podem sempre ser desencadeados por uma valorização drástica e repentina do dólar e a alta deste evidentemente lembrou tais riscos a todos.

O que fazer diante da pressão cambial

Há um desafio intrínseco à economia globalizada. Cada banco central olha para o seu próprio país, decidindo as políticas monetárias de acordo com o que julga necessário em relação ao dilema local entre desemprego e inflação. Mas, em uma economia tão interdependente, as repercussões das decisões de qualquer país grande vão muito além de suas fronteiras. E voltam. A probabilidade de feedback de políticas monetárias restritivas inclusive é maior quando todas elas respondem a um problema inflacionário comum.

A transmissão via taxas de câmbio se inscreve nessa interdependência. Juros mais elevados nos EUA acabam impondo aos demais a escolha entre também elevar juros e/ou deixar ocorrerem saídas de capital e desvalorização cambial.

Alguns países vêm recorrendo a intervenções diretas nas taxas de câmbio em vez de elevar taxas de juros domésticas – ou como complemento. O Japão optou por vender reservas de títulos do Tesouro dos EUA para tentar neutralizar a desvalorização cambial do iene em relação ao dólar. A Suíça também disse estar considerando vender moeda estrangeira para apoiar o franco suíço, além de aumentar as taxas de juros entre as reuniões de seu banco central.

O período após a crise financeira global de 2008-2009 viu “guerras cambiais”, quando os países se acusavam de exportar seus problemas de desemprego por meio de reduções significativas nas taxas de juros domésticas e desvalorização de suas moedas. Poderia uma “guerra cambial reversa” estar surgindo agora, já que a valorização do dólar americano exporta inflação para outros?

Uma coordenação ampla aconteceu em 1985, quando, como agora, o dólar ficou supervalorizado. O “Acordo de Plaza”, então assinado entre França, Alemanha Ocidental, Reino Unido, Japão e EUA, teve como compromisso bem-sucedido a desvalorização do dólar.

Contudo, naquele momento a inflação norte-americana estava já em declínio depois de um período longo de juros domésticos elevados, enquanto o atual aperto monetário e de condições financeiras nos EUA ainda está em curso. O cenário mais provável é o de ausência de acordos equivalentes, com alguns países se esforçando para evitar ajustes puros de taxas de juros mediante intervenção direta nos mercados de câmbio. O efeito será limitado se os fatores subjacentes que levam aos fluxos de capital e pressão cambial não mudarem.

Portanto, o “giro” ou “pivô” do dólar só ocorrerá quando ocorrer um “giro” ou “pivô” na política monetária dos EUA. Entrementes, conforme recomendado por Gita Gopinah e Paul-Olivier Gourrinchas, o Fed deveria reabrir a torneira das linhas precaucionárias de crédito com os demais bancos centrais – como durante a pandemia – para evitar os riscos destes serem colocados contra a parede em situações de súbita iliquidez em termos de dólares.

Otaviano Canuto é membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente do Brookings Institution, professor na Elliott School of International Affairs da George Washington University, professor afiliado na Universidade Politécnica Mohamed VI e principal do Center for Macroeconomics and Development em Washington. Foi vice-presidente e diretor executivo no Banco Mundial, diretor executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de assuntos internacionais no Ministério da Fazenda e professor da USP e da Unicamp.


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