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Enquanto a recuperação econômica mundo afora segue desigual, frágil e desbalanceada entre setores, mercados financeiros vão, no geral, muito bem, obrigado. Nos Estados Unidos, apenas metade do desemprego provocado pela pandemia no ano passado foi revertida, enquanto o mercado acionário seguiu bombando. Claro, isso refletiu em grande medida o suporte extraordinário dado pelas autoridades monetárias desde março do ano passado.


Assim como no período após a crise financeira global de 2007-08, levantam-se vozes falando da política monetária e dos bancos centrais como propulsores da desigualdade de renda e riqueza. As políticas não convencionais de afrouxamento quantitativo protegem os detentores de ativos financeiros e valorizam suas propriedades, enquanto os trabalhadores amargam a dureza no lado real da economia. Como já abordamos aqui, os mercados financeiros se descolaram das agruras da rua dos comuns, com a ajuda das políticas de autoridades monetárias.
Faz sentido atribuir papel concentrador de renda e riqueza às políticas de banqueiros centrais? É complicado...

Antes de tudo, volatilidade e desempenho da macroeconomia aquém de seu potencial prejudicam em particular a parte de baixo da pirâmide de renda e riqueza. O cumprimento adequado da função estabilizadora a cargo de bancos centrais é bom para quem tem menor capacidade de defesa quanto ao desemprego e a inflação.
Aos que me perguntam sobre o resgate ou suporte a instituições financeiras em situações de crise, sempre pergunto de volta sobre qual seria o cenário alternativo. É claro que o desenho de tal suporte pode sempre minimizar a premiação em termos de riqueza de proprietários, mas a verdade é que não se pode perder de vista os cenários macroeconômicos nos casos em que as finanças entram em colapso, tornando a recuperação econômica mais longa e difícil.

Mary Daily, presidente do Federal Reserve Bank de São Francisco, observou recentemente como a longa expansão da economia dos Estados Unidos depois da crise financeira global só se materializou por causa das medidas de estabilização que se seguiram, com taxas de juros decididas a partir da meta de retorno da inflação a 2% anuais. A taxa de desemprego caiu a patamares próximos aos mínimos históricos e, apesar de a taxa média de crescimento do PIB do país no período ter ficado aquém de décadas anteriores, isso não decorreu da política monetária. Ela nota como o baixo desemprego beneficiou em especial trabalhadores afro-americanos e hispânicos em relação aos brancos, além de ter facilitado a reinclusão na força de trabalho de pessoas consideradas sem qualificações adequadas. Além disso, segundo um boletim do Federal Reserve Bank (Bhutta et al, 2020), a expansão macroeconômica prolongada valorizou particularmente os ativos detidos por aqueles na base da pirâmide de riqueza. 

Há economistas que não reconhecem a necessidade de estabilização macroeconômica mediante proatividade de bancos centrais e argumentam que políticas monetárias frouxas favorecem a parte de cima da pirâmide. Seria o caso se políticas expansionistas favorecessem mais os lucros que os salários, além dos ganhos extraordinários dos intermediários financeiros usados para a implementação das políticas (Weiss, 2019). A evidência empírica, contudo, aponta para a predominância de efeitos distributivos na renda das políticas monetárias expansionistas (Colbion et al, 2014).     

Se, por um lado, não parece adequado dizer que políticas de estabilização pelos bancos centrais aumentam a desigualdade, por outro se reconhece cada vez mais como a desigualdade de renda e riqueza afeta a eficácia de suas políticas. Como notou recentemente Luiz Awazu Pereira da Silva, vice-diretor geral do Banco de Compensações Internacionais (BIS, 2021):
“A desigualdade reduz a eficácia da transmissão da política monetária. (...) Alta concentração de renda pode, de fato, afetar a transmissão da política monetária por meio dos diferentes efeitos que condições monetárias fáceis têm em famílias heterogêneas. Famílias mais ricas têm uma propensão muito menor para consumir; portanto, seu consumo pode ser menos reativo a estímulos. Por sua vez, as famílias mais pobres podem não se beneficiar de condições de crédito mais fáceis porque não têm garantias ou avaliação de crédito adequada e, portanto, não podem pedir empréstimos.”

A elevação da desigualdade de renda e riqueza em muitos países na história recente tem razões estruturais, de fundo, tais como as mudanças tecnológicas e os impactos da globalização, além de ausência de redes de proteção social eficazes e traços nacionais quanto a vieses de raça, etnia, gênero e classes sociais no acesso à educação, empregos e fontes de renda.  Políticas tributárias e de gasto público podem fazer muito a respeito. Reguladores financeiros também podem ajudar mediante ações e normas que democratizem o acesso e a disponibilidade de recursos financeiros a baixo custo, minimizando a concentração de mercados. 

Em princípio, caberia à política monetária evitar desemprego e inflação, como nos regimes de metas de inflação perseguidas por bancos centrais independentes. Há que se notar, por outro lado, que a evolução recente nas políticas de bancos centrais, indo além de controlar juros de curto prazo e evitar iliquidez de papéis mais longos, tende a misturar as fronteiras com a política fiscal, por causa da seletividade sobre que títulos favorecer. 

Nesse contexto, já existem até propostas de coordenação entre políticas fiscal e monetária para definir que programas apoiar via monetização pelo banco central (Bartsch et alii, 2019). Também há a proposta formulada por Christine Lagarde, presidente do Banco Central Europeu, de conceder tratamento especial a “títulos verdes” em seus programas de aquisição de ativos, fazendo do “afrouxamento quantitativo” (QE, em inglês) um “verdejamento quantitativo”. Assim como a agenda climática, programas fiscais que lidam com a desigualdade podem acabar, de fato, caindo na seara de bancos centrais. 

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Otaviano Canuto é um membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente do Brookings Institute,  professor assistente adjunto em Columbia University, professor na Elliott School of International Affairs (GWU) e principal do Center for Macroeconomics and Development em Washington. Foi vice-presidente e diretor executivo no Banco Mundial, diretor executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de assuntos internacionais no ministério da fazenda e professor da USP e da Unicamp.

COLUNA PUBLICADA NA FOLHA DE SÃO PAULO

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Bancos centrais e desigualdade

Enquanto a recuperação econômica mundo afora segue desigual, frágil e desbalanceada entre setores, mercados financeiros vão, no geral, muito bem, obrigado. Nos Estados Unidos, apenas metade do desemprego provocado pela pandemia no ano passado foi revertida, enquanto o mercado acionário seguiu bombando. Claro, isso refletiu em grande medida o suporte extraordinário dado pelas autoridades monetárias desde março do ano passado.


Assim como no período após a crise financeira global de 2007-08, levantam-se vozes falando da política monetária e dos bancos centrais como propulsores da desigualdade de renda e riqueza. As políticas não convencionais de afrouxamento quantitativo protegem os detentores de ativos financeiros e valorizam suas propriedades, enquanto os trabalhadores amargam a dureza no lado real da economia. Como já abordamos aqui, os mercados financeiros se descolaram das agruras da rua dos comuns, com a ajuda das políticas de autoridades monetárias.
Faz sentido atribuir papel concentrador de renda e riqueza às políticas de banqueiros centrais? É complicado...

Antes de tudo, volatilidade e desempenho da macroeconomia aquém de seu potencial prejudicam em particular a parte de baixo da pirâmide de renda e riqueza. O cumprimento adequado da função estabilizadora a cargo de bancos centrais é bom para quem tem menor capacidade de defesa quanto ao desemprego e a inflação.
Aos que me perguntam sobre o resgate ou suporte a instituições financeiras em situações de crise, sempre pergunto de volta sobre qual seria o cenário alternativo. É claro que o desenho de tal suporte pode sempre minimizar a premiação em termos de riqueza de proprietários, mas a verdade é que não se pode perder de vista os cenários macroeconômicos nos casos em que as finanças entram em colapso, tornando a recuperação econômica mais longa e difícil.

Mary Daily, presidente do Federal Reserve Bank de São Francisco, observou recentemente como a longa expansão da economia dos Estados Unidos depois da crise financeira global só se materializou por causa das medidas de estabilização que se seguiram, com taxas de juros decididas a partir da meta de retorno da inflação a 2% anuais. A taxa de desemprego caiu a patamares próximos aos mínimos históricos e, apesar de a taxa média de crescimento do PIB do país no período ter ficado aquém de décadas anteriores, isso não decorreu da política monetária. Ela nota como o baixo desemprego beneficiou em especial trabalhadores afro-americanos e hispânicos em relação aos brancos, além de ter facilitado a reinclusão na força de trabalho de pessoas consideradas sem qualificações adequadas. Além disso, segundo um boletim do Federal Reserve Bank (Bhutta et al, 2020), a expansão macroeconômica prolongada valorizou particularmente os ativos detidos por aqueles na base da pirâmide de riqueza. 

Há economistas que não reconhecem a necessidade de estabilização macroeconômica mediante proatividade de bancos centrais e argumentam que políticas monetárias frouxas favorecem a parte de cima da pirâmide. Seria o caso se políticas expansionistas favorecessem mais os lucros que os salários, além dos ganhos extraordinários dos intermediários financeiros usados para a implementação das políticas (Weiss, 2019). A evidência empírica, contudo, aponta para a predominância de efeitos distributivos na renda das políticas monetárias expansionistas (Colbion et al, 2014).     

Se, por um lado, não parece adequado dizer que políticas de estabilização pelos bancos centrais aumentam a desigualdade, por outro se reconhece cada vez mais como a desigualdade de renda e riqueza afeta a eficácia de suas políticas. Como notou recentemente Luiz Awazu Pereira da Silva, vice-diretor geral do Banco de Compensações Internacionais (BIS, 2021):
“A desigualdade reduz a eficácia da transmissão da política monetária. (...) Alta concentração de renda pode, de fato, afetar a transmissão da política monetária por meio dos diferentes efeitos que condições monetárias fáceis têm em famílias heterogêneas. Famílias mais ricas têm uma propensão muito menor para consumir; portanto, seu consumo pode ser menos reativo a estímulos. Por sua vez, as famílias mais pobres podem não se beneficiar de condições de crédito mais fáceis porque não têm garantias ou avaliação de crédito adequada e, portanto, não podem pedir empréstimos.”

A elevação da desigualdade de renda e riqueza em muitos países na história recente tem razões estruturais, de fundo, tais como as mudanças tecnológicas e os impactos da globalização, além de ausência de redes de proteção social eficazes e traços nacionais quanto a vieses de raça, etnia, gênero e classes sociais no acesso à educação, empregos e fontes de renda.  Políticas tributárias e de gasto público podem fazer muito a respeito. Reguladores financeiros também podem ajudar mediante ações e normas que democratizem o acesso e a disponibilidade de recursos financeiros a baixo custo, minimizando a concentração de mercados. 

Em princípio, caberia à política monetária evitar desemprego e inflação, como nos regimes de metas de inflação perseguidas por bancos centrais independentes. Há que se notar, por outro lado, que a evolução recente nas políticas de bancos centrais, indo além de controlar juros de curto prazo e evitar iliquidez de papéis mais longos, tende a misturar as fronteiras com a política fiscal, por causa da seletividade sobre que títulos favorecer. 

Nesse contexto, já existem até propostas de coordenação entre políticas fiscal e monetária para definir que programas apoiar via monetização pelo banco central (Bartsch et alii, 2019). Também há a proposta formulada por Christine Lagarde, presidente do Banco Central Europeu, de conceder tratamento especial a “títulos verdes” em seus programas de aquisição de ativos, fazendo do “afrouxamento quantitativo” (QE, em inglês) um “verdejamento quantitativo”. Assim como a agenda climática, programas fiscais que lidam com a desigualdade podem acabar, de fato, caindo na seara de bancos centrais. 

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Otaviano Canuto é um membro sênior do Policy Center for the New South, membro sênior não-residente do Brookings Institute,  professor assistente adjunto em Columbia University, professor na Elliott School of International Affairs (GWU) e principal do Center for Macroeconomics and Development em Washington. Foi vice-presidente e diretor executivo no Banco Mundial, diretor executivo no FMI e vice-presidente no BID. Também foi secretário de assuntos internacionais no ministério da fazenda e professor da USP e da Unicamp.

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